Em recente passagem pela Capital, antropólogo Luiz Eduardo Soares defendeu proposta para desmilitarizar a corporação
Daniel Sanes
O antropólogo Luiz Eduardo Soares tem uma posição bastante clara e, para alguns, polêmica sobre a polícia brasileira: é preciso desmilitarizá-la urgentemente. Um dos mais respeitados especialistas em segurança pública do País, ele ganhou ainda mais notoriedade quando o livro Elite da Tropa virou best-seller, após sua adaptação para o cinema o filme Tropa de Elite, que, assim como a obra literária, teve uma bem-sucedida sequência.
A convite da vereadora Fernanda Melchionna (P-Sol), Soares esteve na semana passada na Câmara Municipal de Porto Alegre, onde palestrou diante de um plenário lotado principalmente por estudantes e jovens ativistas. Respaldado pelas experiências compartilhadas por policiais militares que o ajudaram em alguns de seus trabalhos, e também por seu trabalho como gestor (foi coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro e secretário nacional de Segurança Pública), o cientista não poupou críticas ao modelo atual de polícia.
Cartesianamente, só haveria um motivo pelo qual a Polícia Militar deveria se organizar à imagem e semelhança do Exército: se as metas fossem as mesmas. E isso não é verdade. Segundo a Constituição, cumpre ao Exército defender a soberania e o território nacionais, recorrendo a procedimentos bélicos caso seja necessário. Já a Polícia Militar (PM), segundo a mesma Constituição, defende os cidadãos da eventual violação dos seus direitos. Quando se diz que ela deve zelar pelo cumprimento da lei, entende-se que deve zelar pela defesa da cidadania, impedindo eventuais violações. Isso nada tem a ver com defender a soberania nacional por meios bélicos, argumenta.
Aos que defendem que é dever da polícia manter a ordem e estar pronta para o confronto, Soares rebate: Alguém pode dizer que há também situações quase bélicas, de enfrentamento armado. Esses casos correspondem a menos de 1% das atividades policiais usuais. E você não vai organizar uma instituição baseada em menos de 1% das suas atribuições. Pode haver unidades especiais com esse propósito, mas em 99% das situações deve-se proceder conforme as normas previstas para essa organização.
PEC 51 tem grande aceitação entre as bases Desmilitarizar a polícia é apenas um passo, admite Luiz Eduardo Soares. É suficiente? Não. Mas é preciso começar por aí, afirma o antropólogo, que defende a aprovação da PEC 51, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), a qual ajudou a elaborar. Além da desmilitarização, a proposta prevê a unificação de todas as polícias em uma estrutura chamada de ciclo único, ostensivo e investigativo, e também as carreiras dos servidores. A PEC conta com amplo apoio quando falamos das bases me refiro aos subalternos, aos não oficiais. Nesse segmento, uma pesquisa detectou que 70% deles são a favor da proposta, diz Soares. Entre os oficiais e delegados, há os que concordam conosco, mas a situação é um pouco mais delicada, revela, alegando que os militares não têm liberdade para se mobilizar. Não há sindicatos, apenas associações. Quem participa de uma eventual negociação é o comandante-geral. A estrutura atual barra a atuação de representantes sindicais, resume, citando o caso de um militar que acabou exonerado por propor mudanças na corporação. Soares acredita que reestruturar o trabalho da polícia também pode ser um grande estímulo para os servidores. Com o modelo que temos hoje, o sujeito inicia a carreira e, se tudo der certo, daqui a 25 anos vai ser sargento. Enquanto isso, um jovem que estuda Direito, aos 21, 22 anos, faz uma prova, e, após um mês de adaptação, vai chefiar 30 homens que estão há 20 anos na área, mesmo sem nenhuma experiência em segurança pública, critica. Na carreira policial, a pessoa trabalha feito um doido, em uma instituição que não favorece o estudo e não considera o tempo de experiência. Ela se sente humilhada, pois não pode aspirar uma ascensão. E a população ignora essa realidade. Sucesso de políticas de prevenção envolve esforço coletivo E qual seria o modelo ideal de polícia, para Luiz Eduardo Soares? Algo como o proposto na política municipal de segurança que ele planejou em 2001 para o então prefeito de Porto Alegre (e hoje governador) Tarso Genro. A ideia era de um trabalho preventivo, articulando secretarias e polícias pra reduzir os homicídios dolosos que se concentravam na Restinga. E, de fato, isso aconteceu durante esse período, pelo menos, lembra o antropólogo. Segundo Soares, detectou-se que os chamados meninos problema do bairro, na verdade, eram crianças que sofriam as consequências de um lar desestruturado, geralmente com pai alcoólatra e histórico de violência familiar. É claro que uma criança nessas condições vai apresentar problemas na escola, ser mais agressiva. O fato é que essa história tem um fim previsível, lamenta. Manter uma política preventiva, no entanto, exige uma mudança de cultura e de estrutura, como defende Soares. Isso funciona quando o policial atua como um gestor de segurança pública na comunidade. No Brasil, isso acontece eventualmente, quando as circunstâncias são muito favoráveis. Em geral, porém, são pouco duradouras. E esse é um desafio que precisamos enfrentar. A postura da PM nas manifestações Assim como ocorre em Elite da Tropa, obra em que a história é vista sob o ponto de vista dos policiais, Luiz Eduardo Soares faz uma reflexão sobre a postura repressiva dos militares nos protestos de junho. Como muitas vezes acontece nos confrontos, a gente vê o manifestante com ódio do policial e o policial com ódio do manifestante, quando a fonte do ódio de ambos está distante dali, pondera. Eles (policiais) se sentem revoltados com essa situação. Então, quando lhes pedimos respeito aos direitos humanos, não entendem do que estamos falando. Essa não é a realidade em que vivem, observa, ressaltando que as manifestações de junho foram positivas, apesar da tática adotada pelos políticos e por parte da mídia para dividir os ativistas entre os bons e os vândalos. Alguns morderam essa isca, e isso acabou dificultando a adesão da maioria da população, analisa. Voracidade pelo encarceramento O Brasil é o país da impunidade. Quando ouve essa afirmação, Luiz Eduardo Soares responde, em tom irônico, mas crítico: o Brasil pune, sim, e muito. Tínhamos cerca de 140 mil presos na metade da década de 1990, e hoje chegamos a 550 mil. E quem são esses presos? Jovens negros e pobres. Estamos enjaulando jovens negros e pobres com uma voracidade feroz. Para o antropólogo, criou-se uma ideia de que encarceramento é sinônimo de produtividade policial (se não há instrumentos para investigar, busca-se a saída mais fácil). Defensor da legalização das drogas, ele atribui esse furor encarcerador não só ao modelo atual da corporação, mas à mentalidade dos governos, que veem na prisão de pequenos infratores um modo de dar uma satisfação à mídia e à classe média sem, de fato, solucionar problema algum. A proibição das drogas, somada ao nosso modelo policial, constitui um núcleo de reprodução de desigualdades e do racismo no Brasil. Não há situação em que o racismo seja mais pronunciável no País do que na segurança pública.
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