O QUE MOVE UM AGENTE INFILTRADO DA PF? "QUEM JÁ PRENDI E QUEM VOU PRENDER"

Ele põe para tocar o samba-enredo “O Amanhã”, na voz da cantora Simone, e faz um desabafo para a plateia: Todo dia em que eu acordo, eu penso em duas coisas. O cara que eu prendi ontem e aquele que eu vou prender hoje. É isso que norteia minha vida há 18 anos. Muitos riem de mim. A minha obsessão, segundo os meus críticos, não me leva a nada mais que à loucura ou à morte precoce. Mas eu acho que eles estão errados A frase é o que o basta para uma onda de palmas em pé para o agente da Polícia Federal Nicodemos, o Nico. Diante de um grupo formado por juízes, promotores, policiais e agentes penitenciários, ele fala em mais uma palestra sobre sua atuação como investigador especializado em infiltração em organizações criminosas. A mais famosa delas foi como infiltrado na quadrilha que fez o assalto do Banco Central em Fortaleza, em 2005. Ex-professor e ex-cobrador de ônibus que migrou do Nordeste, Nicodemos agora tenta melhorar o salário preparando-se para voltar às salas de aula. Para garantir sua segurança, o UOL preserva seu sobrenome, sua imagem e o estado em que ele reside. Mais de cem missões por ano Nicodemos começa a trabalhar cedo. Muitas vezes vai direto para a rua, principalmente nas missões em que atua como agente infiltrado em alguma quadrilha. Para os criminosos, é só mais um comparsa. Para a Polícia Federal, é mais um agente dentro de uma delegacia que combate assaltos a bancos, agências de Correios – que guardam altas somas de dinheiro no interior – e lotéricas. A maioria dos casos está associada a tráfico de drogas, uso de explosivos, reféns, tiros e algumas mortes. O time conta com outros seis policiais, que têm que lidar com uma média de cem casos por ano. A líder da equipe é uma delegada, cujo nome será omitido para não revelar a base de atuação do grupo. Por escrito, ela repassa as missões aos agentes. Com ou sem a técnica de infiltração, eles executam várias delas para cada caso. Ou seja, são mais de cem missões anuais. Se o caso merece infiltração, a ação é mais sensível. Autorizada pela Justiça, a técnica coloca o policial dentro das organizações criminosas, simulando ser um dos bandidos para obter informações e repassar à polícia a fim de que a investigação chegue até o líder do bando. Se a identidade falsa for descoberta, o agente pode ser assassinado. Nicodemos se recusa a dar detalhes de suas técnicas próprias de infiltração. Não revela sequer quantas ações deste tipo faz a cada ano. Adianta apenas o que não faz por questões éticas. Ele se proíbe de tomar algumas medidas de aproximação da quadrilha. Uma delas é se achegar à família do criminoso a ponto de namorar a filha de um traficante. Da mesma forma, não atua para que uma filha do chefe da quadrilha se apaixone por ele, contou ao UOL. São condutas que não são vedadas pela lei mas que são num outro nível pela ética e pela moral que a gente também tem que respeitar Nicodemos, agente da PF especialista em infiltração. Ordens dadas, orientações decoradas Nem sempre a ação exige disfarces tão complicados e a técnica de infiltrar-se. A delegada repassa missões mais simples para desvendar outros crimes. Com os dizeres em papel memorizados na cabeça, Nicodemos volta a rua e retorna alguns dias depois. As atividades podem ser uma vigilância ou acompanhamento, seguidas de registros com fotografias e vídeos. Também conversa com informantes e testemunhas, muitas vezes sem dizer que é policial. Também é preciso fazer pesquisas em bancos de dados, checar números de identidade, fotografias de suspeitos, consultar placas de veículos, levantar dados na internet ou em sites de notícias. Tudo isso para conseguir o máximo de informação para facilitar a descoberta de quem está praticando um crime ou se prepara para cometer outro. “A gente está quase sempre na rua”, resume Nicodemos. E, com frequência, outros crimes e outros criminosos são descobertos, alguns sem relação alguma com a apuração original pedida pela chefia. “É dinâmico”, explica Nicodemos. “A investigação anda mais rápido que o inquérito.” Mas tudo tem que ser repassado à chefia. Nicodemos volta para a delegacia e escreve os relatórios com os resultados de todas as missões pedidas pela delegada. E ainda escreve os dados dos possíveis outros crimes que acabou descobrindo em suas andanças. O relatório anexa fotografias, vídeos, links da internet, extratos e tudo o mais que for preciso para ajudar a esclarecer o crime. Após cinco anos e seis nomes falsos, foragido é preso O último desafio do agente Nicodemos foi prender um assaltante de bancos e agências dos Correios – onde funciona o banco postal – que estava foragido há pelo menos cincos anos. Já haviam sido localizados seis nomes que ele usou para fazer roubos e praticar outros crimes. Mas não adiantava procurar por Antônio da Silva Dantas. Esse também era um nome falso. “É um lobo solitário”, narrou Nicodemos, ao citar que, na maioria dos assaltos, ele atua praticamente sozinho. Já havia feito assaltos em Pernambuco e no Piauí. Numa ação, levou R$ 200 mil, muita coisa para o padrão de pequenas cidades. Durante cinco anos, Nicodemos e seus colegas procuraram provas e pistas sobre o paradeiro do assaltante misterioso. Nunca achavam. Quando encontraram uma prisão dele seguida de soltura ficaram chocados – “tapa na cara do Estado”. Depois de muito procurar e trocar informações com outros colegas, foi a PM de Pernambuco que acabou topando com o foragido. Em junho passado, “Dantas” foi preso. O nome verdadeiro seria Antônio Cândido dos Santos. Foi detido em Pernambuco pela Polícia Militar do estado numa ação de rotina. Ele foi encaminhado à Polícia Federal em Salgueiro (PE) para apuração dos demais assaltos dos quais é suspeito. Há um pedido da PF para que seja encaminhado a um presídio federal. O UOL não localizou a defesa de Antônio Cândido. “Na polícia, não basta prender” Nicodemos diz que sempre “reencontra” criminosos que conheceu investigando o assalto à agência do Banco Central em Fortaleza. Em 2005, bandidos cavaram um túnel na cidade, por onde furtaram R$ 164 milhões. Os líderes do bando foram presos. Nico diz que, apesar de não trazerem tanta fama, as investigações que mais satisfizeram o agente foram as apurações sobre homicídios. Uma delas foi a chacina de Unaí (MG), quando um motorista e três fiscais do trabalho que faziam inspeção em fazendas foram assassinados no entorno de Brasília. A equipe em que Nicodemos trabalhou fez contato com as famílias das vítimas. “Essa é uma das razões pelas quais entrei na polícia”, avalia. “A gente tem a oportunidade de identificar crimes. A investigação bem feita do policial é uma forma também de fazer justiça aos mais simples, combater covardias. Em Unaí, o que está por trás da morte de fiscais… Uma situação de extrema covardia. Participar da prisão dessas pessoas é também passar uma mensagem para a sociedade. Na polícia, não basta prender. Tem que passar uma mensagem, uma mensagem positiva.” “Não resolvemos todos os problemas de segurança com algemas” O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, professor Renato Sérgio de Lima, contestou algumas avaliações de Nicodemos sobre a necessidade encarcerar mais. Sem ser informado do nome do agente, disse que isso é uma atitude típica dos policiais. “É natural este tipo de reação”, afirmou ao UOL. “O dia a dia do trabalho policial vai endurecendo o profissional e, exatamente por isso, temos que separar polícia de administração prisional. O Estado tem múltiplas funções e a ressocialização é uma delas.” O professor afirma que prender não é a única função dos agentes. “É uma delas. Polícia tem várias funções. Mas no Brasil virou sinônimo. Prevenção também é função policial.” Nicodemos diz que, na palestra, falou a frase de efeito sobre fazer prisões para uma plateia com muitos agentes penitenciários. “A gente investiga fatos. O que me lembra das pessoas que eu prendi e das que eu vou prender é em cima de fatos que elas praticaram e que continuam praticando.” Para ele, o trabalho do policial tem “uma função educativa e pedagógica muito grande”. “Não vamos resolver todos os problemas da segurança pública com algemas.” Do interior nordestino para aulas sobre Machado de Assis Nicodemos passou a infância no interior profundo de um estado do Nordeste. O pai e a mãe são lavradores, e criaram sete filhos. Para tentar melhorar a vida, ele mudou-se para Brasília em 1993. Foi camelô nas feiras em Planaltina, cidade do Distrito Federal. Também trabalhou em lojas e no McDonald’s. Depois passou a rodar pelo Plano Piloto como cobrador de ônibus. Conseguiu entrar no vestibular da Universidade de Brasília. Formou-se em letras e arranjou um emprego como professor de literatura do Colégio Objetivo e de cursinhos. Ensinou Machado de Assis e outros autores clássicos por três anos. Ainda tentou ser policial militar em Brasília em 1997. Em 2001, passou no concurso da PF e foi enviado para o Norte e Nordeste do país. Além de letras, estudou direito e agora faz mestrado. “Não consigo viver só de sonho” Na PF, os agentes recebem cerca de R$ 12 mil brutos por mês, segundo o Sindicato dos Policiais Federais no DF. Quem tem mais de 13 anos de profissão, como Nicodemos, recebe o teto: R$ 18 mil mensais. Ele entende que a carreira está desvalorizada e que recebe metade do que deveria por causa da complexidade e risco da atividade. Por isso, faz novos concursos que podem tirá-lo da polícia. Fez provas para promotor de Justiça e delegado em estados do Centro-Oeste e do Nordeste. Delegados e peritos da PF, por exemplo, ganham R$ 23 mil mensais. Em 2017, Nicodemos tentou obter um aumento salarial retroativo que havia sido concedido aos delegados, mas a Justiça negou. “Não consigo viver só de sonho”, explica Nico, pai de dois filhos. “Sou demandado pela minha família também. Tanto é que atualmente me preparo para um mestrado para, em paralelo à atividade policial, encontrar tempo para dar aula em alguma faculdade.”

  FONTE: UOL]]>