A carreira policial federal é única

Artigo

Por: José Ronaldo Brites

Uma decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região negou apelação (processo nº 2001.34.00.013784-2/DF), numa ação que visava obrigar a União Federal a matricular os autores em curso de formação profissional para o cargo de delegado de Polícia Federal.

A notícia foi alardeada no site da associação dos delegados da PF, em 17/01/2013, embora nenhuma novidade tenha sido declarada pelo TRF e a decisão esteja em consonância com o sistema constitucional vigente: “Os cargos ocupados pelos policiais são na realidade integrantes de carreiras distintas, deforma que o provimento se dá mediante aprovação em concurso público”.

Logicamente, essa decisão não tem o condão de alterar a expressão no singular de “carreira”, que consta tanto no Art. 144 da Constituição Federal quanto na Lei nº 9.266/96 e demais atos normativos de efeito concreto, para “carreiras”, no plural, como apareceu na página oficial da intranet da PF, quando noticiou as atribuições dos cargos, encaminhadas recentemente pelo diretor-geral do órgão ao senhor ministro da Justiça.

Na verdade, várias ações foram interpostas em face da União com objetivo de garantir oacesso ao cargo de delegado de Polícia Federal, mediante mera matrícula em curso de formação da Academia Nacional de Polícia (ANP), com fundamento no Decreto-Lei nº 2.320/87, à mingua de não haver mais o concurso interno que garantisse 50% das vagas para o público interno. Equivocadamente, alguns deputados e delegados ensaiaram ressuscitar esta proposta, na última tentativa de aprovação da Lei Orgânica da PF.

Alguns autores até mesmo conseguiram êxito, em sentença de primeiro grau, reformada em sede de apelação, conforme jurisprudência juntada ao teor do acórdão:

“SERVIDOR PÚBLICO. CARREIRA POLICIAL FEDERAL. INSCRIÇÃO AUTOMATICA EM CURSO DE TREINAMENTO PROFISSIONAL DE INTEGRANTES DE NIVEL MEDIO DA CARREIRA PARA ACESSO AO CARGO DE DELEGADO DE POLICIA FEDERAL, DE NIVEL SUPERIOR. IMPOSSIBILIDADE. ASCENSÃO FUNCIONAL ABOLIDA DO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DECRETO N. 85.645/81, ART. 14, PARAGRAFOS 1 E 2. DECRETO-LEI N. 2320/87, AT. 9. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 37, II.

 1 – Não e possível ao judiciário determinar a administração a realização de curso de treinamento profissional da academia nacional de policia por depender, tão-somente, de oportunidade e conveniência a seu critério.

 2 – A inscrição em curso de treinamento profissional da academia nacional de policiadepende de aprovação do candidato em concurso publico e dentro do numero de vagas existentes. (decreto n. 85.645/81, art. 14, parágrafos 1 e 2, decreto-lei n. 2320/87, art. 9).

3 – A constituição federal de 1988 aboliu do ordenamento jurídico brasileiro a ascenção funcional ou acesso como forma de investidura em cargo publico. (constituição federal, art. 37,II, STF, ADIN n. 245 – RJ – 13/11/92). 4 – Apelação provida. 5 – Remessa oficial prejudicada. 6 – Sentença reformada.” (AC nº 92.01.26759-2/MG, TRF-1ª Região, 1ª Turma, Rel. Des. Federal Catão Alves, DJ de 23/05/94, p. 24.394).

O TRF foi coerente com a jurisprudência já sedimentada sobre o assunto. Disso ninguém duvida e concorda plenamente. Porém, conforme se extrai do teor dos debates e votos dos ministros do STF, em julgamentos sobre o assunto das “CARREIRAS”, notadamente de ADINs, como nos da ADIN 231, fica clara a distinção entre os institutos da ascensão e promoção, conforme a sua ementa:

“ ADIn 231 – EMENTA: – .. Ascensão ou acesso, transferência e aproveitamento no tocante a cargos ou empregos públicos. – O critério do mérito aferível por concurso público .. é, .., indispensável para cargo ou emprego público isolado ou em carreira. Para o isolado, em qualquer hipótese para o em carreira, para o ingresso nela, que só se fará na classe inicial e pelo concurso público de provas ou de provas títulos, não o sendo, porém, para os cargos subseqüentes que nela se escalonam até o final dela, pois, para estes, a investidura se fará pela forma de provimento que é a”promoção”.

Estão, pois, banidas das formas de investidura admitidas pela Constituição a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a geral o servidor público ingressou por concurso, e que não são, por isso mesmo, ínsitas ao sistema de provimento em carreira, ao contrário do que sucede com a promoção, sem a qual obviamente não haverá carreira, mas, sim, uma sucessão ascendente de cargos isolados.”

Com efeito, para a existência de uma carreira verdadeiramente única, não se pode haver concurso público direto para os cargos intermediários da carreira (no caso da PF, para o cargo de delegado). É o que diz expressamente, em termos muito claros, o eminente ministro Octávio Gallotti, em seu voto no mesmo julgado (ADIn 231):

“Ora, o que temos agora em vista é a chamada ascensão funcional, que pressupõe, necessariamente, a existência de duas carreiras: a carreira de origem e aquela outra para a qual ascende o funcionário.

Uma carreira, no serviço público, pode ter cargos de atribuições diferentes, geralmente mais complexas, à medida que se aproximam as classes finais.

Nada impede, também, que a partir de certa classe da carreira, seja exigido, do candidato à promoção, um nível mais alto de escolaridade, um concurso interno, um novo título profissional, um treinamento especial ou o aproveitamento em algum curso, como acontece, por exemplo, com a carreira de diplomata.

O que não se compadece com a noção de carreira – bem o esclareceu o eminente Relator, – é a possibilidade de ingresso direto num cargo intermediário.

Se há uma série auxiliar de classes e outra principal, sempre que exista apossibilidade do ingresso direto na principal não se pode considerar que se configure uma só carreira.”

Por conta deste equívoco conceitual, entre ascensão e promoção, bem como mesmo no passado, antes da CF/88, também fosse admitido o concurso público para os cargos intermediários, na realidade nunca se teve, na maioria das vezes, carreira verdadeiramente única, no serviço público federal, e sim carreiras distintas, formadas por cargos que podiam ser acessados pelo instituto da ascensão funcional.

Esta possibilidade fica clara nos debates e votos dos ministros do STF, ao interpretarem que a Carta Magna não extinguiu a carreira única no serviço público, formada por cargos que possuem uma relação forte de atividade funcional, até mesmo para sempre se manter o servidor motivado, em uma verdadeira aplicação do princípio da eficiência no serviço público prestado ao cidadão.

Voto do ministro CARLOS VELLOSO na ADIN 231:

“Estaria disposto e até me reservo para, numa outra oportunidade em que a questão novamente se colocar, em reexaminá-la, tendo em vista o disposto no art. 39 da Constituição, que deseja o estabelecimento de planos de carreira, quando estivermos diante de cargos ou de funções que apresentam características absolutamente assemelhadas. Nesses casos, penso, nos casos em que os cargos ou funções apresentam tais características, a solução seria colocar tais cargos ou funções numa só carreira e assim propiciar as promoções dos servidores.”

Diálogo entre os eminentes Ministros MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO na ADIn 231:

“O Sr. Ministro MARCO AURÉLIO: – Uma distorção, algo extraordinário, norteando um procedimento em definitivo a ponto de fulminar-se o que foi agasalhado pela Carta: a carreira. Não podemos generalizar, nem chegar a tanto.

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO: – Amanhã poderemos estar diante de carreiras ou de funções.

O Sr. Ministro MARCO AURÉLIO: – Cito o exemplo do Judiciário: temos a movimentação da categoria de auxiliar para a categoria da técnico. Sabidamente, inúmeros auxiliares desempenham atividade de técnico. Vamos agora fulminar essa carreira, que existe no âmbito do Judiciário?

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO: – V.Exa. deu um exemplo que realmente me sensibiliza. No Superior Tribunal de Justiça, havia auxiliares que exerciam as mesmas funções dos técnicos judiciários. Isto ocorre também nesta Casa. Então, tratando-se de funções com características de absolutaassemelhação, acho que, em obséquio ao art. 39, que manda constituir carreira, talvez fosse possível…

O Sr. Ministro MARCO AURÉLIO: – A carreira, com o predicado da movimentação, ficará restrita a níveis, a referências, sem nenhuma perspectiva maior para o servidor, sem um desafio, até mesmo quanto ao aprimoramento constante e interminável, enquanto houver vida.”

Trecho do voto do ministro Marco Aurélio na ADIN 231:

Quanto ao instituto da ascensão, tomado por alguns como progressão funcional para categoria diversa, o que para mim ascensão é, cumpre distinguir as soluções sob o ângulo da clientela, pois a Constituição Federal em vigor não o obstaculiza peremptoriamente. Admite-o desde que entre os cargos envolvidos haja interligação, ou seja, afinidades entre as funções a eles inerentes. Assim o é porque a atual Carta não fulminou a possibilidade de observar-se, no serviço público, a carreira, compreendida esta como reveladora de cargos diversos que possuem pontos em comum. Ao contrário, em prol da Administração Pública e, inegavelmente, também em benefício do próprio servidor, o legislador constituinte a previu, evitando, destarte, afossilização dos respectivos quadros ou a prejudicial rotatividade.

A mudança de categoria, sem concurso, mediante nova investidura, somente está expungida do cenário jurídico quando entre o cargo ocupado e o pretendido inexiste aindispensável relação, de modo a que se conclua situarem-se, ambos, na mesma carreira, entendida esta em seu real significado, ou seja, como fenômeno viabilizador doaprimoramento constante, quer do servidor enquanto pessoa humana, quer da Administração Pública, no que voltada à prestação de bons serviços à comunidade.

Frise-se que na definição dos cargos compreendidos em determinada carreira deve sobressair o aspecto real – princípio da realidade – em detrimento do formal, mesmo porque ainda que existente lei dispondo de forma discrepante e, assim, interligando cargos que nada têm em comum, o conflito com a Carta mostra-se manifesto.

Em síntese, o que não é mais possível é a investidura em cargo ou emprego público sem observância da exigência constitucional – o concurso público – para o ingresso em uma nova carreira, passando o servidor a desenvolver atividade totalmente estranha à do cargo primitivo.

A exigência do concurso público de que cuida o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal não alija, de forma peremptória, a transposição de um cargo a outro. Com a Lei Básica é compatível tal mudança toda vez que entre os cargos haja ligação, consideradas as atividades que lhes sejam próprias, dado indispensável a concluir-se coabitarem o teto da mesma carreira, cuja introdução, na Administração Pública, é mandamento constitucional.

Dizer-se, a esta altura, que a passagem de um para outro cargo da mesma carreira somente é possível pela via do concurso público é afastar as perspectivas do servidor quando do ingresso no serviço público, esvaziando-se o significado do artigo 39 da Constituição Federal no que, ao prever a adoção do regime único, alude ao implemento do plano de carreira.

Conclusão:

a)    Do exposto, a recente decisão do TRF da 1ª Região não trouxe nada de novo e extraordinário, pois no modelo atual, embora a Constituição disponha que a Polícia Federal é órgão instituído em CARREIRA, no singular, o governo federal ainda o mantém estruturado com cargos integrantes de carreiras distintas, e assim compatibilizou a decisão judicial;

b)    Conforme asseveraram os ministros do STF, a Carta Magna não teve a pretensão de acabar com a criação das carreiras verdadeiramente únicas ou com o instituto da promoção funcional, que nunca foi utilizado corretamente;

c)    A lei 8.112/90 prevê tanto a promoção (art. 8º, inciso II), como o ingresso e desenvolvimento do servidor na carreira (art. 10 e parágrafo único);

d)    É patente que a atividade policial é exercida por todos os cargos policiais e que a estrutura em carreira única está presente nas policias mais modernas do mundo;

e)     Enquanto existir concurso para cargo intermediário não se tem uma carreira verdadeiramente única;

f)     A qualquer momento o Governo Federal pode reestruturar carreiras de modo a unificá-las. Assim como já ocorreu até em outros entes públicos, não há impedimento legal para isso. Pelo contrário, segundo os ministros do STF, seria o ideal pela valorização do servidor público.

José Ronaldo Brites é Agente de Polícia Federal em Joinville/SC

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