Por: Ivenio Hermes
“A vontade é verdadeiramente a matéria prima do Direito, e não há outra, nem mais nobre, nem mais misteriosa.” [1]Francesco Carnelutti .
A monotonia da insatisfação no trabalho que desenvolve é uma das maiores frustrações do homem, e quem subjuga a vontade de crescer de quem trabalha com honestidade, está exercendo a crueldade da tirania. O mito grego de Sísifo foi condenado a uma condição semelhante, pois tinha que fazer todos os dias a mesma coisa, ou seja, executar a mesma rotina cansativa e tudo porque ousara contrariar os deuses manipuladores.
A condição da vontade de Sísifo não foi respeitada, e tudo que ele queria era somente a igualdade de todos.
Qualquer manobra se justifica dentro da agenda de quem busca pelo poder supremo ou absoluto, ou por se manter nele, não apenas pela ambição de alguns. E sob o clarim de mais um possível escândalo na esfera política, o ruído de uma possível tentativa de alguns Delegados Federais em chantagear membros do Governo Federal para manipular votação de leis e projetos, arrisca macular a frágil e desgastada democracia brasileira.
Não sei se foi motivado pela ambição de poder ou pelo status, o resto foi, mas sem se importar com as eleições presidenciais que se avizinham com os grandes e recentes escândalos de vazamentos de informações. Como se não bastasse, a segurança pública atualmente desprivilegiada pelos investimentos e pelo respeito aos profissionais, recebe o denodo do avanço exponencial da criminalidade em todas as esferas contra o declínio das forças policiais.
Nesse cenário de ansiedade surge um documento que teria sido emanado pelo próprio Ministro da Justiça que privilegiaria a carreira de Delegado Federal em detrimento não só de outras classes policiais, mas ferindo outras esferas do poder público, pois oblitera o princípio da isonomia para conferir aos motivadores da atitude desse grupo de delegados, o sonhado poder absolutista viria na figura do Super Delegado, uma roupagem que investiria ao cargo de policial com prerrogativas de Ministério Público.
Na informação obtida com Franklin Albuquerque, presidente do SINPOFAC, e de Jones Borges Leal, presidente da FENAPEF, lemos céticos e pasmos as palavras que descrevem a MP para a criação do Super Cargo de delegado.
No parágrafo 4º, do art. 1º, é proposto que a classe dos Delegados de Polícia Federal possua as prerrogativas de carreira jurídica, algo que já foi sabiamente retirado pela Assembleia Constituinte responsável pela Carta Magna de 1988. Essa exposição de motivos e o próprio texto da MP são um desafio à Constituição Federal, o maior documento jurídico da República, configurando-se em um fantasma que ressurge de tempos em tempos ou como matéria reciclada que tenta se passar por algo inovador, contudo destruidor dos direitos, princípios e valores que assombram nossa sociedade.
Percebam que um cargo que tem como dever de ofício atos invasivos da privacidade de cidadãos (interceptações telefônicas, quebra de sigilo fiscal, vigilâncias, etc.) não pode ser revestida de prerrogativas, deve sim, estar limitado e cercado por regras de controle, se possível externo, para tentar evitar o corporativo. Isso para prevenir toda sorte de abusos e omissões que certamente um super cargo estará passível de cometer.
A transcrição abaixo corrobora o que já foi dito antes, e dentre os fatos e os boatos que estão sendo suscitados, ele merece ser lido e portanto grifamos as partes que consideramos mais relevantes.
…:::INICIO DA TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO:::… EM nº___ /2014/MJ/MP Brasília, ___de setembro de 2014. Excelentíssima Senhora Presidenta da República, 1. Temos a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência a presente minuta de Projeto de Lei que dispõe sobre atribuições de comando do cargo de Delegado de Polícia Federal. 2. Na condição de órgão estratégico para o sistema constitucional de segurança pública, previsto no artigo 144, a Polícia Federal precisa aprimorar a sua estrutura interna de cargos e atribuições de maneira a exercer as suas atribuições, com eficiência, efetividade e eficácia na prevenção e repressão aos crimes transnacionais, dentre eles o tráfico internacional de pessoas, armas e entorpecentes, na violação aos Direitos Humanos, na repressão a crimes contra comunidades indígenas, no terrorismo, no desvio de recursos públicos, na lavagem de dinheiro, nos crimes interestaduais que exijam repressão uniforme, dentre outras atribuições de grande importância para a sociedade brasileira, seja em matéria de polícia judiciária, seja na atividade de polícia administrativa. 3. A Polícia Federal, segundo o delineamento constitucional que lhe fora dispensado, ostenta a atribuição exclusiva de polícia judiciária da União e concorrente em matéria de crimes interestaduais que exijam repressão uniforme, nos termos do artigo 144, § 1º, inciso I, da Magna Carta e da Lei nº 10.446 de maio de 2.002, com competências análogas àquelas cometidas aos órgãos de que trata o § 4º do art.144 da Constituição Federal. 4. Deve-se, portanto, reconhecer a simetria estrutural e sistêmica da polícia judiciária da União com as polícias judiciárias estaduais. Nesse sentido, considerando tratar-se de instituição de segurança pública pautada, sobretudo, no princípio hierárquico, afigura-se que a Polícia Federal guarda similitudes, a exemplo do que ocorre com a Polícia Civil do Distrito Federal, instituição congênere na estrutura administrativa, igualmente organizada, mantida pela União e regida pelo mesmo estatuto, a Lei nº 4.878, de 03 de dezembro de 1965, devendo, portanto a Polícia Federal ser chefiada por Delegado de Polícia Federal de carreira, da última classe. 5. No entanto, considerando que a Portaria nº 523/2009 – MPOG, que atualmente disciplina as atribuições dos cargos da Polícia Federal, foi anulada no âmbito da Justiça Federal em primeira instância no Distrito Federal, por meio do processo nº 30576-10.2011.4.01.3400, que está em reexame necessário no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, bem como que a discussão sobre atribuições dos cargos da Polícia Federal é assunto de elevada complexidade, o que demanda um profundo estudo a ser realizado pela Instituição, é relevante e urgente a definição de atribuições de comando ao cargo de Delegado de Polícia Federal, definido por lei como autoridade policial, privativo de Bacharel em Direito, o qual desempenha atividade jurídica, policial e de direção da Polícia Federal, cujo ingresso exige aprovação em concurso público de provas e títulos, com etapas eliminatórias e classificatórias e, no mínimo, sendo recomendável que o candidato possua três anos de atividade jurídica ou de exercício de cargo de polícia judiciária, comprovados no ato de posse, sob pena de haver um vácuo legislativo e instabilidade institucional se a decisão final da Justiça Federal anular definitivamente a referida portaria antes da expedição do instrumento legal ora sugerido. 6. São essas, Senhora Presidenta, as razões que nos levam a submeter à deliberação de Vossa Excelência a anexa proposta de Projeto de Lei. Respeitosamente, JOSÉ EDUARDO CARDOSO Ministro de Estado da Justiça MIRIAM BELCHIOR Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão …:::FIM DA TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO:::.. Recordemos que as similitudes da Polícia Civil do DF em relação à Polícia Federal, foram os fundamentadores para conquistas de isonomia de tratamento, e agora o documento acima busca o caminho contrário apenas para um grupo dentro de uma instituição. E também, qualquer tentativa de privilegiar um grupo ou uma classe em detrimento de outro, não deve constar dentre as boas práticas de uma gestão que consubstancia o eco da vox populi, pois a legitimidade do poder de uma nação se origina no povo e se referenda no voto.
Portanto, no arco de excessos cometido pelo documento acima, observemos 4 pontos:
1 – O Cargo de Diretor Geral da Polícia Federal seria exercido com inequívoca exclusividade apenas por delegados federais, já tentando frear a simples tentativa de se ter uma carreira única nos moldes de outros países.
2- O cargo de Delegado só seria possível com curso de Direito e com, acompanhamento da OAB, (trazendo a representação da entidade de classe para o meio policial, e com todo respeito ao trabalho social que OAB faz), sua presença dentro da esfera de Polícia Federal fere os princípios de uma carreira policial, desrespeitando o fino princípio de segurança e provocando ingerência em um Departamento de Polícia do porte e da responsabilidade da Polícia Federal.
3- Exigência de três anos de prática jurídica (o que atrela a carreira ao seguimento de prática profissional e não à segurança pública) ou 3 anos como policial.
4- Hierarquia e disciplina. (E neste item se cria um enorme engodo de dizer que não existe hierarquia horizontal, engodo derrubado pelo exemplo de organização da Polícia Rodoviária Federal, que se fundamenta cada vez mais no seio da sociedade brasileira, enquanto a PF sofre os desgastes de disputas interna e carreiristas.)
Por fim, sem ferir nenhuma competência e sem nenhuma antipatia pela classe de delegados ou pelo Ministro da Justiça, nem tampouco qualquer antipatia pela Presidente da República, se possível fosse gostaríamos de lembrar que o equilíbrio deve ser mantido e qualquer intento que aumente a falha que já é abissal entre os delegados e o restante das classes deve ser evitado.
Enquanto preparávamos esse texto, a Medida Provisória Nº 657, de 13 de Outubro de 2014 era decretada em seu texto integral pela Presidente Dilma Rousseff, A defesa veemente de um Ministro de Estado em uma pauta celetista e preconceituosa, algo que não parece correto, foi o convencimento para a Suprema Executiva, escolhida pelo povo, votar beneficiando uma carreira dentro de um órgão de segurança pública composto de pelo menos mais 3.
Estaria havendo mesmo algum tipo chantagem? Especulam uns… O que haveria de tão grave para esconder? Outros arriscam… A realidade agora é aqueles que deveriam ser os baluartes da defesa das instituições de segurança, transformam mais de 9.000 homens e mulheres em potenciais“Sísifos” e o restante, absolutamente minoritário, em “Semideuses”, pois agora esse pequeno grupo impôs sua condição de vontade a um Ministro de Estado e uma Presidente da República, recebendo a dádiva da condição soberana às suas atribuições, recebendo poderes bem além daqueles necessários e suficientes para bem servir à sociedade brasileira.
Essa anulação preconizada pela Medida Provisória Nº 657 deve encerrar os sonhos e as possibilidades de crescimento das outras que formam a mesma polícia e oportunizando futuras “paralizações”.
A sociedade brasileira precisa ser beneficiada pelos serviços policiais e a Polícia Federal tem importante papel nessa prestação de serviço, sendo reconhecida como um dos poucos redutos de reserva moral nesse país, onde homens e mulheres possuidores de valores que estão se tornando escassos como a incorruptibilidade e o senso moral elevado, buscam trabalhar juntos. Pessoas com valores assim, precisam do trato de reconhecimento e impulso meritocrático para crescerem em suas carreiras e não para terem sua vida profissional estagnada ou achatada pelo poder absoluto que outros insistem em buscar.
Reconhecidamente percebemos a intenção de blindar um cargo tornando-o acima de qualquer outro, isolando e o transformando num super delegado com múltiplas personalidades, sendo algumas vezes um super jurista ou super bacharel em direito, mas nunca sequer um policial comum, que experimentou a proximidade entre o patamar elevado onde sua posição se fixa e o patamar dos policiais mais inferiores e ladeados com a sociedade que demanda seus serviços.
Se é a qualidade da prestação de serviço que se visava realmente preservar e melhorar, não é ferindo a doutrina e os estandartes do direito comparado, no que tange a segurança pública ao redor do mundo.
Se é a busca pelo respeito e pela isonomia de tratamento, pela defesa dos direitos fundamentais resguardados na Constituição Federal, a MPV657 primou pelo retrocesso aos paradigmas institucionais que já foram negados pela Carta Magna, e que resultam em privilégios para poucos, em detrimento de muitos prejudicados e transformados em“Sísifos” modernos, já que a MP não representa a soma das vontades da maioria dos que formam o todo efetivoconhecido como policiais federais.
E que nós, simples mortais, sempre primemos pela igualdade de direitos. [1] Francesco Carnelutti foi um proeminente advogado, juristas e pesador jurídico da Itália, cuja obra o tornou uma das principais inspirações para o Código de Processo Civil italiano. [2] HERMES, Ivenio. A Condição da Vontade (Conditio voluntae). 2014. Disponível em: < http://j.mp/1tCIhME >. Publicado em: 14 out. 2014 (Produzido originalmente para a FENAPEF). [3] Ivenio Hermes é especialista em políticas e gestão em segurança pública, escritor com 9 livros publicados, ganhador do prêmio literário Tancredo Neves, colaborador e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; consultor de segurança pública da OAB/RN Mossoró, pesquisador da violência homicida para o COEDHUCI/RN.
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