A segurança pública está em colapso

Vinculado à defesa dos interesses do Estado e de costas para a cidadania, o modelo vigente de segurança pública brasileiro tem se mostrado incapaz de garantir justiça, paz, direitos ou condições mínimas de segurança à população, apesar de consumir mais de R$ 50 bilhões por ano. “Já chegamos ao colapso. Jogamos um jogo de soma zero no qual somos a maior vítima”, alerta o sociólogo Renato Sérgio de Lima, 40 anos, secretário- geral do Fórum Nacional de Segurança Pública. Autor dos livros Segurança Pública e Violência (Ed. Contexto, 2006) e Entre palavras e números – violência, democracia e segurança pública no Brasil(Alameda Editorial, 2011), Lima defende nesta entrevista ao Extra Classe a segurança pública como fator de desenvolvimento sustentável, com participação e transparência. Extra Classe – A chacina na escola Tasso da Silveira, no Rio, no dia 7 de abril, que provocou a morte de 12 pessoas, motivou a proposta de um novo plebiscito sobre desarmamento. Na sua opinião, faz sentido realizar nova consulta ou esse debate em torno do plebiscito só serve para ocultar os reais problemas da segurança? Renato Sérgio de Lima – Creio que é mais importante, em termos políticos e de gestão da segurança pública no país, discutirmos mecanismos de fortalecimento do Estatuto do Desarmamento. Há vários projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam flexibilizar as regras impostas pelo Estatuto e, a meu ver, eles enfraquecem a opção pelo controle, que é, sem dúvida, o meio mais eficiente de garantir que uma arma de fogo não seja usada. Ou seja, mais do que uma nova consulta, o Brasil ganharia muito mais com o reforço das ações que visam melhorar o controle das armas de fogo em circulação no país e prevenir a violência. EC – Em 2005, a maioria votou contra o desarmamento, embora uma pequena parcela da população seja proprietária de armas. Como o senhor vê esse paradoxo: a população não usa armas, mas é a favor do porte, da posse e cultua as armas? Lima – O que houve, na minha opinião, foi uma exitosa campanha de marketing em torno das armas de fogo e que explorou o medo e a insegurança da população. O Estado, que em tese deveria garantir paz e direitos, não tem conseguido atuar no campo da segurança pública e, com isso, abriu brechas para que esse medo fosse trabalhado. O Brasil tem um sistema de justiça e segurança pública caótico e que está à beira do colapso. Gastamos muito, mas faltam recursos para serviços essenciais, convivemos com taxas de violência extremamente altas faz vários anos, a população tem medo e não confia nas suas polícias e no sistema de justiça, quase metade dos presos no país encontram- se sem julgamento, bem como persistem denúncias de corrupção e violência institucional. Somado a isso, historicamente, nossas polícias foram criadas para submeter a sociedade aos interesses de Estado e não conseguem oferecer condições de trabalho, vida e salário aos mais de 600 mil profissionais da segurança pública. Ou avançamos em rediscutir o modelo de segurança pública do Brasil ou ficaremos à espera da próxima crise ou tragédia. EC – Andar armado é garantia de proteção? Como o senhor responde ao argumento de quem acredita que o desarmamento deixaria a população vulnerável porque os bandidos continuariam armados? Lima – De modo algum. Numa pesquisa para o meu mestrado, em 1995, percebi que a maioria dos homicídios de São Paulo era cometida com arma de fogo e em função daquilo que chamei de conflitos interpessoais, tais como brigas na rua e/ou em bares. A arma de fogo potencializa conflitos que antes eram resolvidos por outros meios. Pelos dados que disponho, essa realidade não mudou muito. É verdade que o crime organizado em torno, exatamente, das armas trouxe uma componente nova para a segurança pública, que foi uma certa glamourização da arma enquanto instrumento de imposição de respeito, que se associa a traços da nossa cultura e provoca, no limite, a banalização da violência. Arma de fogo, sozinha, não protege ninguém. EC – A maioria dos assassinatos é cometida com armas furtadas ou roubadas, mas o debate sobre o controle da circulação de armas ilegais no país só ganhou alguma força após a chacina de Realengo. Por quê? Lima – Crimes como o de Realengo sempre provocam debates sobre o porte e uso de armas de fogo. No caso, lembro-me do documentário de Michael Moore, de 2002, sobre o massacre de Columbine, nos EUA, que teve um impacto profundo no meio cultural daquele país e de vários outros na década de 2000. Moore foi o responsável por abrir um flanco importante no consenso sobre o porte de armas nos EUA. Porém, a pergunta que me interessa aqui é sobre como cada país, mais especificamente o Brasil, lida e media seus conflitos sociais e criminais. Será a partir dessa resposta que teremos condições de pensar como estruturar políticas públicas mais eficientes na prevenção da violência. EC – De acordo com o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), cerca de um terço das armas apreendidas na última década é de fabricação nacional que, adquiridas de forma legal, foram parar nas mãos de criminosos após serem furtadas ou roubadas. A maior parte das armas apreendidas, no entanto, é nacional, mas não tem histórico de comercialização, quer dizer, saem pela porta dos fundos das indústrias direto para a ilegalidade. Quem controla as indústrias e o vazamento de armas? Lima – A indústria de armas no Brasil é sofisticada, tem inserção em vários mercados no mundo e representa um segmento econômico que gera milhares de empregos e possui grande poder político e militar. Assim, não é possível imaginar que basta querer e os problemas serão resolvidos. Estamos falando em termos geoestratégicos e, desse modo, diferentes interesses estão em jogo. Entretanto, se não é possível imaginar um Brasil sem indústrias de armas, é, sim, possível adotar mecanismos fiscais e de controle que sensibilizem as forjas a incorporar tecnologias já disponíveis e que permitiriam, por exemplo, rastrear armas e projéteis de um modo muito mais eficiente. Não podemos, sob o pretexto econômico, abdicar daquilo que caracteriza o Estado moderno, ou seja, do monopólio do uso da força. O Brasil tem ganhado destaque no cenário internacional e já tem condições de ver seus padrões tecnológicos adotados no mundo todo. Dessa forma, daríamos uma forte mensagem política ao mundo se aliássemos economia e valores, se aliássemos economia e vida.

EC – O Brasil é o sexto país mais violento do mundo, com uma média de 50 mil homicídios por ano. Por que o país não consegue desatar os nós da segurança pública? Lima – Como eu disse anteriormente, a segurança pública está em colapso no Brasil. Todavia, poucos avançamos numa agenda política que priorize a segurança pública para além dos tempos políticos e eleitorais. Não tenho dúvidas de que os problemas são gigantes e estruturais, mas também tenho a esperança e a convicção de que eles serão enfrentados para além dos discursos, de forma inteligente e articulada. A meu ver, isso pode ser incentivado por meio da defesa intransigente da transparência e de mecanismos de controle e participação, requisitos básicos da democracia. Isso significa defender a informação como pilar das instituições de justiça e segurança pública – não só para gestão, mas para a prestação de contas. Aqui, vale um exemplo importante. No momento em que discutimos a produção de estatísticas com finalidade de melhorar a gestão da segurança pública, as Polícias Federal e Rodoviária Federal, que se destacam pelo enorme esforço de modernização e busca por eficiência, ainda não contam com Ouvidorias Externas e não publicam suas estatísticas. Assim, não podemos ter certeza se as conquistas alcançadas por essas instituições são definitivas e/ou estão sujeitas aos humores da política. EC – Na comparação com outros países, os indicadores relativos à criminalidade no Brasil são aceitáveis? Lima – De modo algum. Se usarmos os EUA como exemplo, que é um país que cultua as armas de fogo, percebemos que nosso processo civilizatório ainda caminha lentamente. Lá as taxas de violência são baixas e uma das razões é a capacidade do Estado em controlar e, se necessário, agir rapidamente frente às ameaças. Aqui, quando não reclamamos da falta de recursos, lamentamos o peso da burocracia. Não descarto que ambos os cenários são complexos, mas, no caso, acredito que alcançamos um patamar pelo qual não é possível querer menos do que a ousadia por parte dos gestores públicos em enfrentar os gargalos históricos da segurança pública. Faz-se necessário um enorme esforço de articulação e pactuação em torno de um novo pacto federativo, que envolva diferentes instâncias de poder e de governo. Jogamos um jogo de soma zero no qual somos a maior vítima. Não há vencedores. EC – Violência e criminalidade decorrem da desigualdade social e do tráfico ou essas questões se somam à incapacidade do Estado em dar conta da segurança diante de outras demandas? Lima – Violência e criminalidade têm múltiplos determinantes. No plano das políticas públicas, várias são as iniciativas que podem contribuir para a melhora da situação brasileira nessa seara e não caberia discorrer sobre todas as possibilidades aqui. Entretanto, falando especificamente sobre as instituições de justiça e segurança, o país parece ficar deitado em berço esplêndido de um sistema gestado nos anos 40, do século passado, e não inovar em sua arquitetura e estrutura. Polícias, Defensorias, Ministérios Públicos, Judiciário, Sistema Carcerário e mais recentemente Guardas Municipais disputam verdades institucionais entre si e anulam a capacidade de garantirmos justiça, paz, direitos e segurança pública. No plano legal, diferentes concepções de ordem e segurança convivem no ordenamento jurídico do país, fazendo com que o sistema de justiça criminal tenha baixíssima eficiência. EC – O senhor tem afirmado que, mantidas as atuais tendências de crescimento dos gastos públicos sem melhora nos indicadores de criminalidade e violência, a estrutura da segurança pública do país caminha para um colapso. Por quê?

Lima – Eu diria que já chegamos ao ponto de colapso. Nada mais emblemático do que a atual perspectiva de greves e manifestações de policiais no Brasil todo. Como podemos imaginar um gasto de mais de R$ 50 bilhões anuais com a área e ainda assim não conseguirmos pagar salários adequados aos policiais brasileiros e/ou os estados e municípios dependerem tão fortemente dos repasses voluntários da União? Num momento como o do início do governo Dilma, no qual foi preciso um forte ajuste fiscal, essa dependência provoca a desestruturação dos serviços básicos prestados pelas polícias. O problema é que gastamos muito e gastamos mal, esse é o meu diagnóstico. E isso não decorre da opção por maiores garantias de direitos, mas da enorme dificuldade em reformarmos o modelo de segurança pública vigente. Em suma, dependemos mais do que nunca da capacidade de inovação e articulação, pois não creio que conseguiremos suportar o ritmo crescente de investimentos na área por mais alguns anos. EC – Na sua opinião, por que os sistemas de segurança pública e a justiça não conseguem dar conta das suas demandas? Lima – Tenho minhas sugestões, mas, mais do que enunciá-las, estou preocupado em criar a “ambiência” para que o debate seja encarado de forma definitiva. Ou seja, mais do que defender uma posição e em consonância com a proposta do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o ponto a ser incentivado e valorizado é a urgente e necessária alteração do modelo de segurança pública brasileiro. Devemos repensar o modo de organização das nossas forças policiais e, mais, de como a segurança pública deve ser vista como vinculada aos interesses da sociedade, da cidadania, e não do Estado. A Constituição de 1988 avançou na substituição da segurança nacional pela segurança pública, mas não conseguiu alterar o cenário sociopolítico e cultural que teve suas origens na ideia de defesa dos interesses do Estado como condição ao desenvolvimento. Aqui, cabe pensarmos segurança pública como fator para o desenvolvimento sustentável e democrático. Isso só é possível com a inversão de prioridades e com o incentivo da participação e da transparência, como eu já destaquei. EC – De acordo com o Mapa da Violência, divulgado em fevereiro pelo Ministério da Justiça, entre 2002 e 2008 houve um aumento de 13% no número de jovens negros assassinados no país e uma queda de 30% nas mortes violentas de jovens brancos. O que indicadores como esses representam? Lima – A violência, no Brasil, tem um viés étnico e racial que não pode ser menosprezado. Por muitas vezes associado às condições de pobreza e desigualdade, esse processo invisibiliza tal realidade e impede a adoção de políticas públicas específicas. Sob o argumento das regras jurídicas igualitárias, temos um Estado crente de que não devemos pensar sobre esse problema no âmbito do sistema de justiça criminal para além do processamento legal de situações tipificadas como crimes de racismo. A pergunta que faço, contudo, é: que sistema é esse que em tal cenário não mobiliza uma reflexão sobre procedimentos e lógicas de funcionamento cotidiano? A questão, voltando ao sistema de justiça criminal, é como garantir direitos em um contexto multicultural e dinâmico. Não creio que nosso sistema de justiça esteja preparado para fazer frente a tal empreitada. EC – Fale sobre seu próximo livro. Lima – Estou organizando, em colaboração com José Luiz Ratton Jr., da UFPE, uma coletânea de entrevistas com a geração de cientistas sociais que inaugurou, no Brasil, o campo de estudos sobre crime, violência, direitos humanos e segurança pública. Estamos reunindo depoimentos de cerca de 20 pessoas que foram pioneiras em pesquisar sobre tais temas e que, passados 30 anos, deram origem a uma profícua produção acadêmica, que, em interação com as políticas públicas, pode ser vista como determinante para o estágio atual do debate sobre justiça e segurança pública no país.

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