Agência FAPESP – Em um pequeno telescópio instalado no topo de uma montanha coberta por bananeiras, entre os municípios sul-mineiros de Brazópolis e Piranguçu, um grupo de cientistas vem acompanhando um fenômeno astronômico inédito, cujo ápice deverá ocorrer nos próximos dias: a abertura de um buraco na superfície de uma estrela gigante, conhecida como Eta Carinae, que permitirá desvendar os segredos de seu interior.
Os dados das observações serão, nos próximos meses, comparados com os modelos teóricos existentes e poderão validar ou colocar em xeque todo o conhecimento científico sobre a estrutura de grandes estrelas, segundo Augusto Damineli, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do grupo internacional composto por 30 cientistas e astrônomos amadores, seis deles brasileiros.
“Os achados terão reflexos indiretos no conhecimento sobre todas as estrelas com mais de dez massas solares, pois elas têm estruturas homólogas. Já as pequenas, como o nosso Sol, são muito diferentes. Mas pode acontecer de encontrarmos algo tão grave que altere até mesmo a teoria sobre a estrutura das pequenas estrelas”, disse Damineli à Agência FAPESP. O pesquisador há mais de 20 anos tem se dedicado a estudar, com apoio da FAPESP, os mistérios da “beldade”, como chama carinhosamente a estrela.
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Situada na constelação de Carina a quase 8 mil anos-luz da Terra, o que nos parâmetros astronômicos é considerado “logo ali do lado”, Eta Carinae é uma estrela fora dos padrões. Com tamanho equivalente a 90 massas solares, seu diâmetro pode ser comparado com a distância que a Terra percorre ao redor do Sol. Sua potência luminosa é uma das maiores conhecidas pelo homem: cerca de 5 milhões de sóis.
“Estrelas gigantes eram comuns quando o Universo era jovem e havia matéria-prima abundante, mas, à medida que elas foram se formando, os gases ficaram capturados. Esse tipo de estrela tem vida curta, cerca de 3 milhões de anos, enquanto o Sol pode chegar a 10 bilhões de anos e as estrelas com um décimo da massa solar, a 1 trilhão de anos. A maioria das gigantes estelares, portanto, explodiram logo no começo do universo. Eta Carinae é um dinossauro que temos a sorte de ter em nosso quintal. É possível estudar o passado olhando para ela”, afirmou Damineli.
A descoberta do sistema binário
Ainda no começo de sua carreira no IAG-USP, no fim da década de 1980, o astrônomo ficou instigado com alguns fenômenos estranhos que haviam sido descritos em Eta Carinae nos anos de 1948 e 1960. Decidiu então dedicar um tempo para observar a estrela cada vez que fosse a um observatório.
“Eu tinha a hipótese de que quanto maior a energia de uma estrela, maior seria a emissão de luz no espectro ultravioleta. Mas não é possível observar as emissões em ultravioleta da Terra, pois elas são degradadas em outros comprimentos de onda pela atmosfera da estrela e também pela terrestre. Então, me concentrei no canal de hélio”, contou Damineli.
O canal ou linha espectral de hélio nada mais é do que a luz ultravioleta absorvida pelos íons de hélio existentes no interior da estrela e reemitida em um comprimento de onda maior, na forma de luz visível, capaz de atravessar as atmosferas estelar e terrestre e chegar com intensidade forte o suficiente para ser captada pelo telescópio Perkin-Elmer de apenas 1,6 metro de diâmetro existente no Observatório do Pico dos Dias, administrado pelo Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Minas Gerais.
Vista externa (à esquerda) e interna do telescópio Perkin-Elmer, de 1,6 m de diâmetro, principal equipamento do OPD/LNA (fotos: Leandro Negro/Agência FAPESP – clique para ampliar)
“Essa é uma estrela tão estonteante que seria impossível observar tudo o que ela emite, não daria tempo. Me concentrei no canal de hélio, pois sabia que qualquer evento de grande energia seria captado pelo meu satélite artificial de pobre. E foi assim em 1989, 1990, 1991. Mas, em junho de 1992, aquele canal começou a apagar cerca de 60 sóis por noite. É uma variação brutal de energia, mesmo para uma estrela do porte de Eta Carinae. Passados alguns meses, ele voltou a acender”, relembra o pesquisador.
Ao comparar os dados de suas observações com as descrições dos fenômenos de 1948 e 1960, Damineli chegou à conclusão de que aquele “apagão” estelar que ocorria em algumas faixas do espectro eletromagnético se repetia a cada 5 anos e meio. Em um artigo publicado no The Astrophysical Journal, em 1996, previu que um novo evento ocorreria no ano seguinte.
Nenhum colega estrangeiro teve coragem de assinar o trabalho com Damineli. Temiam que os dados obtidos no “jungle telescope” (telescópio da selva) de Minas Gerais fossem imprecisos. Mas ele estava certo. A estrela apagou.
“Tal fenômeno só poderia ser explicado pela existência de duas estrelas, uma menor e outra maior. Elas vão girando e, de tempos em tempos, uma esconde a outra. Um eclipse. Calculei 90 massas solares para a maior e 30 para a menor. É o que dá para 5 anos e meio”, contou o pesquisador.
Se há de fato duas estrelas, argumentou Damineli, seus ventos solares iriam colidir quando elas se aproximassem do periastro, o ponto mais próximo de suas órbitas, e isso liberaria uma energia de 10 milhões de graus Celsius e causaria a emissão de raios X.
Um grupo de pesquisadores liderado por Mike Corcoran, da National Aeronautics and Space Administration (Nasa), dos Estados Unidos, aceitou a sugestão de Damineli e passou a apontar o telescópio de raios X RXTE praticamente todos os dias para a estrela até que, no período de apagão, a hipótese foi confirmada.
“Corcoran disse: ‘Você errou! Na verdade, são 100 milhões de graus Celsius’. E eu respondi: ‘Melhor ainda!’”, contou Damineli.
Por esse trabalho, em 1999, Corcoran ganhou um prêmio da Nasa. Seus dados deram consistência à abordagem proposta por Damineli e, a partir desse ponto, cresceu exponencialmente o interesse da comunidade astronômica internacional pelos estudos com a gigante da Via Láctea – agora dividida em Eta Carinae A e Eta Carinae B.
O eclipse seguinte foi acompanhado por uma equipe internacional em observatórios de diversos países do hemisfério Sul – de onde o fenômeno é mais visível. Os astrônomos calcularam que, pelo tamanho das estrelas, o apagão duraria um mês. Mas Eta Carinae novamente surpreendeu seus admiradores e levou seis meses para voltar ao normal.
“Percebemos que o evento que ocorria a cada 5 anos e meio era mais complicado do que imaginávamos. Em 2003 e em 2009, vimos que ele sempre começava na hora prevista, então era de fato um eclipse. Mas cada volta acontecia de um jeito diferente. Havia algo além. Minha hipótese era que o vento de uma estrela embolava com o vento da outra e ocorria uma espécie de colapso. Somente quando as duas se afastavam é que tudo voltava ao normal”, disse Damineli.
A nova teoria foi publicada em janeiro de 2012 no The Astrophysical Journal, tendo como autor principal Mairan Teodoro, então bolsista de doutorado da FAPESP, que atualmente faz pós-doutorado na Nasa.
“Apareceram jovens de vários países, desses que já nasceram com um teclado na mão, interessados em investigar a hipótese do colapso. São feras em computação, fizeram novos cálculos e mudanças importantes na teoria que eu havia proposto”, contou Damineli.
O pesquisador do IAG havia reparado que, pouco antes do apagão, era possível captar a emissão de átomos de hélio duplamente ionizados (He++) – algo esperado apenas para estrelas muito mais quentes do que Eta Carinae.
“Durante 50 anos se falou que Eta Carinae é uma estrela fria, de no máximo 15 mil graus Celsius, então deveria haver apenas átomos de hélio neutro em sua superfície. Mas, baseado nos dados que observei, João Steiner (professor do IAG/USP) mostrou que, um mês antes do apagão, ocorre uma fulguração equivalente a 5.200 vezes a luz do sol apenas em ultravioleta extremo, que produz o He++”, explicou Damineli.
Os dados foram publicados em outro artigo no The Astrophysical Journal.
Em seguida, Thomas Madura, pós-doutorando da Divisão de Ciência Astrofísica da Nasa, propôs em novo artigo, publicado em 2013 na Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, que a emissão de He++ poderia ser explicada pela existência de um buraco na fotosfera da estrela maior. Os íons viriam não da superfície, portanto, mas da subfotosfera da estrela, onde a temperatura é bem mais alta.
“Acreditamos que, em um determinado momento, as duas estrelas se chocam. A menor acaba entrando na maior e deixando suas entranhas à mostra. Por duas ou três semanas antes do apagão, é possível observar esse buraco e é justamente o que estamos fazendo agora. Mas quando elas chegarem ao periastro, o buraco vai para o lado oposto. Ainda continuará aberto por mais algum tempo, mas não será possível estudá-lo”, contou Damineli.
O buraco vem sendo acompanhado do espaço desde o início de julho, pelos telescópios orbitais Hubble e Swift, da Nasa, e também de observatórios situados na Nova Zelândia, Austrália, África do Sul, Argentina, Chile e Brasil. Estima-se que o fenômeno será visível até 1º de agosto.
“No Observatório do Pico dos Dias, estamos usando um telescópio ainda menor que aquele usado para descobrir a existência do sistema binário. Ele tem apenas 60 centímetros, é todo manual e seu design é do século 19. Foi trocado com a Alemanha Oriental por café”, contou Damineli.
A vantagem, segundo o pesquisador, é que o equipamento – um telescópio Zeiss com espelho coletor de 60 centímetros de diâmetro – é menos concorrido, o que permite uso prolongado.
Vista interna (à esquerda) e externa do telecópio manual Zeiss, com espelho coletor de apenas 60 centímetros (fotos: Leandro Negro/Agência FAPESP – clique para ampliar)
“Nele, eu consigo captar os canais de que preciso e tenho a oportunidade de observar Eta Carinae durante 60 noites seguidas, algo impossível em um telescópio grande. No Hubble, por exemplo, consigo apenas 1 hora e meia por mês. Isso não é nada para um fenômeno como este”, explicou.
Uma das metas dos pesquisadores é descobrir qual é o tamanho e a profundidade do buraco que EtaB abre na superfície de EtaA e, dessa forma, confirmar as teorias sobre os diferentes íons existentes em cada uma das camadas que formam as grandes estrelas.
“É a primeira vez que observamos uma estrela com a pele cortada e podemos ver as emissões da subfotosfera. Agora queremos enfiar a cara e descobrir o que há lá embaixo”, comemorou Damineli.
Uma estrela moribunda
As técnicas para observar indiretamente o sistema binário, como, por exemplo, analisar as emissões da linha espectral de hélio, foram necessárias porque as duas estrelas principais e suas irmãs menores estão cobertas por uma densa nuvem de gás e poeira, explicou Damineli.
Conhecida como Homúnculo, a nebulosa foi recentemente mapeada tridimensionalmente por um grupo de nove astrofísicos – três deles brasileiros. Os resultados foram divulgados no início de julho na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society.
O autor principal e desenvolvedor do software SHAPE, utilizado na modelagem do Homúnculo, é Wolfgang Steffen, pesquisador da Universidad Nacional Autônoma de México (Unam).
De acordo com a pesquisa, o Homúnculo teria a forma de dois lóbulos, como uma ampulheta, constituídos de uma casca fina de poeira com cerca de 15 vezes a massa do Sol e 3 trilhões de quilômetros de extensão. O sistema binário de estrelas ficaria no encontro desses dois lóbulos (leia mais em http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/07/08/nebulosa-em-3d).
“Acredita-se que a nebulosa tenha sido originada por uma grande explosão de EtaA ocorrida em 1843 e, desde então, ela vem se expandindo. São 15 massas solares viajando a uma velocidade de 650 quilômetros por segundo. Com uma fórmula simples, calculamos que a energia necessária para jogar tal quantidade de matéria seria equivalente à de uma pequena supernova”, contou Damineli.
Ao redor do Homúnculo, há sinais de uma explosão mais antiga, que teria ocorrido há cerca de 2 mil anos. Observações indiretas sugerem ainda que teria ocorrido uma terceira explosão há apenas 110 anos – contrariando novamente as teorias de que a supernova representaria o fim definitivo de uma estrela.
“Aparentemente, Eta Carinae nos mostra que as estrelas podem morrer parcialmente. É algo novo, que nem todos os astrônomos conhecem”, disse Damineli. No entanto, acrescentou, a grande quantidade de nitrogênio liberada durante a explosão de 171 anos atrás seria um indício de que a estrela está de fato morrendo.
“Ela está com o pé na cova, já passou por três explosões. Sabemos que tem 2,5 milhões de anos e que estrelas desse tipo costumam viver 3 milhões de anos. Mas esses piripaques podem antecipar a morte. Pode acontecer a qualquer momento, mas, se errarmos os cálculos em 250 mil anos, não passaremos vergonha”, disse Damineli.
Fonte: Agência Brasil
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