No fim de maio, na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal fazia audiência pública para discutir saídas para a execução penal no país e quebrava a cabeça para lidar com o número maior de presos no regime semiaberto do que o de vagas disponíveis, o site do Senado Federal informava haver pelo menos três projetos de lei em tramitação na casa para redução da maioridade penal e inclusão de maior número de novos inquilinos nos presídios. O descompasso não é novo. Há mais de 20 anos, o então desembargador Alberto Silva Franco, do antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, destoava da maioria de seus colegas de corte ao levar em conta que o Direito Penal não é solução para problemas sociais e que as garantias previstas na Constituição deveriam ser concretizadas pelo Judiciário. Suas posições, assim como as de seus colegas de Câmara no tribunal, contrariavam o entendimento punitivo em alta durante a ditadura militar e vigente ainda hoje diante da sensação de falta de segurança dos indivíduos.
O grupo não ficou muito tempo no tribunal. Depois de passar pela Vice-Presidência do Tribunal de Alçada Criminal, Franco deixou a corte no mesmo ano em que foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ele e os demais integrantes de sua Câmara saíram para fundar a primeira entidade voltada para o direito de defesa e para olhar o Direito Penal do ponto de vista científico. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), criado em 1992 para promover o debate, hoje é uma das mais conceituadas instituições acadêmicas na área. Franco é autor de diversas obras doutrinárias sobre Direito Penal.
“O instituto criou uma mentalidade diferente. Temos hoje pessoas com bastante representatividade que expressam pensamentos garantistas: no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça, mesmo no Tribunal de Justiça de São Paulo. É claro que ainda são minorias, mas há uma mensagem no ar. Isso é importante”, comemora o ex-desembargador. “As pessoas precisam viver na ditadura para valorizar o que é a liberdade.”
Alberto Franco e o IBCCrim são bem conceituados no meio jurídico acadêmico. A eles é atribuída participação na nomeação dos ministros Cezar Peluso para o STF e Maria Thereza de Assis Moura para o Superior Tribunal de Justiça, além de vários desembargadores para o TJ-SP. A relação entre Peluso e Franco é estreita. O recém-lançado livro Ministro Magistrado – Decisões de Cezar Peluso no Supremo Tribunal Federal, que reúne os votos mais marcantes do ministro, é prefaciado pelo fundador do IBCCrim.
Franco foi ainda o articulador da menina dos olhos do instituto — a parceria com a Universidade de Coimbra, que desde 1994 promove seminários anuais no país com a participação de professores portugueses. Em agosto proóximo, as entidades ministram curso sobre Teoria Geral do Crime.
Presidente de honra do IBCCrim, Franco recebeu a ConJur na sede do instituto, juntamente com a atual presidente Mariângela Gama de Magalhães Gomes e o secretário Pedro Bueno de Andrade. Os três falaram dos desafios para o direito de defesa no atual cenário, da recente centralização da administração das execuções penais em São Paulo e das possibildiades de investigação pelo Ministério Público, assunto em discussão no STF.
Leia a entrevista:
ConJur — Como desembargador, o senhor foi um dos poucos a levantar a bandeira da presunção de inocência durante o período militar. Foi uma espécie de embrião de garantismo no Tribunal de Justiça de São Paulo? Alberto Silva Franco — Exatamente. Foi na 5ª Câmara do antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo [o tribunal foi incorporado ao Tribunal de Justiça com a Emenda Constitucional 45/2004] que começou essa discussão. Não era uma postura individual, mas de um grupo que tinha uma compreensão diferente daquela da maioria. Passaram pela 5ª Câmara nomes como Adauto Suannes; Ercílio Cruz Sampaio; Dirceu Rocha Lima; Edmeu Carmesini; e Ranulfo de Melo Freire, que é sempre tido e havido como o guru de todos nós; também Dirceu de Melo, que na ocasião em que eu ingressei era o presidente da Câmara. Esse colegiado passou a tomar posições muito independentes das da jurisprudência daquela época, sempre baseadas na ideia de que o cumprimento da Constituição era mais importante do que o cumprimento da lei, porque muitas leis eram autoritárias. Nós achávamos que era muito mais relevante respeitar-se a Constituição — embora ainda estivéssemos diante de uma Constituição de regime autoritário.
ConJur — Como era aplicar princípios constitucionais em um período de garantias restritas? Alberto Silva Franco — Embora a Constituição atual tenha aumentado em muito as garantias, a Constituição de 1967 também apresentava uma série de direitos. Nós procurávamos torná-los válidos.
ConJur — Havia apoio? Alberto Silva Franco — Tivemos um grande contato com a Igreja Católica que, na época, era dirigida pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Esse grupo procurou se aproximar da Igreja para a discussão da problemática da Justiça, tendo em vista a questão da Teologia da Libertação.
ConJur — Quando surgiu a ideia desse grupo de juízes de fundar o IBCCrim? Alberto Silva Franco — Em 1992 o instituto nasceu. Mas havia já uma ideia de que a gente deveria ter algo do tipo. Não havia um instituto que tivesse a preocupação com Direito Penal e Processo Penal. Faltava estudo científico. Não havia nenhuma ressonância sobre questões penais fora dos limites internos das universidades. Tínhamos uma revista de Direito Penal, dirigida por Heleno Fragoso, mas que não tinha periodicidade. Quando ele faleceu, a revista foi junto. A ideia de se criar um instituto com esses propósitos foi acolhida por esse grupo anteriormente. Tínhamos feito os estatutos, estava tudo mais ou menos preparado. Mas faltava um leitmotiv, alguma coisa que justificasse a criação. E ocorreram duas, exatamente no mesmo dia. Foram o impeachment do presidente Fernando Collor — primeira vez que ocorria isso na história política do país —, e o massacre do Carandiru. Doze dias depois, nós fundamos o Instituto, com 94 sócios.
ConJur — Por que esses fatos foram o estopim? Alberto Silva Franco — O impeachment trouxe os holofotes para o campo político. Era a primeira vez que um presidente era colocado fora do cargo pela via legal. Já o massacre mostrou a forma cruel com que agia a Polícia Militar. Tudo isso chamava a atenção para a necessidade de um Direito Penal que fosse mais garantista.
ConJur — Já se passaram mais de 20 anos desde a criação do IBCCrim. Qual é o balanço? Alberto Silva Franco — O instituto criou uma mentalidade um pouco diferente. Temos hoje pessoas com bastante representatividade que expressam pensamentos garantistas: no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça, mesmo aqui, no Tribunal de Justiça de São Paulo. É claro que ainda são minorias, mas há uma mensagem no ar. Isso é importante. Antes, no regime ditatorial, as reuniões que tivemos em Itapecerica da Serra (SP) com a cúpula da igreja católica, às quais compareceram o padre Gutiérrez [Gustavo Gutiérrez Merino, frade dominicano e teólogo peruano], que era o grande mentor da Teologia da Libertação, e o Boff [Leonardo Boff, ex-frade franciscano, teólogo e escritor], eram reuniões vigiadas pela Polícia. Ela ia aonde a gente ia, para acompanhar. As pessoas precisam viver na ditadura para valorizar o que é a liberdade…
ConJur — Na área penal, quais as diferenças entre a Constituição de 1967 e a atual? Alberto Silva Franco — Por exemplo, não se dava liminar em Habeas Corpus. O Tribunal de Justiça tinha uma posição definida sobre isso. No Tribunal de Alçada Criminal se começou a dar liminar em Habeas Corpus. Dizia-se que liminar era em Mandado de Segurança, não em Habeas Corpus. Hoje, liminar é uma coisa comum. Mas naquela época, a gente sempre encontrava um espaço na Constituição para dizer que ela precisava ser respeitada.
ConJur — Por que pediu aposentadoria do Tribunal antes de completar a idade para a compulsória? Alberto Silva Franco — Achávamos, meus colegas de Câmara e eu, que poderíamos fazer muito mais fora do Tribunal do que dentro. O IBCCrim já estava na cabeça de todos nós. Seria uma instituição que poderia crescer independente do Poder Judiciário.
ConJur — O senhor é apontado como um articulador da indicação do ministro Cezar Peluso ao Supremo Tribunal Federal. É verdade? Alberto Silva Franco — Vamos pôr isso em termos. Houve um movimento muito grande que tinha, de certa forma, o prestígio de um grande número dos advogados mais renomados de São Paulo, da magistratura de São Paulo, de membros do Ministério Público, no sentido de colocá-lo no Supremo. Fazia falta um representante paulista no Supremo. Não foi um movimento pessoal, mas coletivo. E não tivemos sucesso da primeira vez, quando foi escolhido o ministro Gilmar Mendes, que era advogado-geral da União.
ConJur — O que chamou a sua atenção em Peluso? Alberto Silva Franco — Ele era uma figura importante, porque teve vários posicionamentos interessantes dentro da magistratura. Houve um episódio famoso no Presídio do Hipódromo, quando os presos se revoltaram. Ele foi chamado para resolver a situação. A Polícia Militar estava na porta para invadir e ele e um padre — que também teve muita influência nesses movimentos da época ditatorial, que era o padre Agostinho — conseguiram evitar que houvesse a invasão. Seria uma antecipação do Carandiru. Ele também presidiu um inquérito contra um juiz acusado em São Paulo de fatos extremamente graves. E foi firme na apuração, o que levou esse juiz a ser expulso da carreira e condenado criminalmente. Então, chamava a atenção sua atuação e o fato de ser um homem brilhante.
ConJur — No Supremo, o ministro era visto como um julgador duro… Alberto Silva Franco — Ele era um especialista na área de Processo Civil e Direito Civil. Em toda a sua vida como juiz, tirando, evidentemente, as comarcas iniciais, ele sempre trabalhou muito mais na área cível e processual civil. Quando ele foi para o Supremo, passou a enfrentar questões penais. E no exame dessas questões, foi extremamente garantista. Teve uma atuação que eu considero magnífica. Ele era o relator da ação que considerou inconstitucional a Lei 8.072, de 1990, no caso de crimes hediondos, em que era obrigatório o regime fechado. Também o processo sobre a possibilidade de liberdade provisória em casos de tóxicos. Foi uma bela atuação penal.
ConJur — Foi também com a sua participação que a ministra Maria Thereza de Assis Moura chegou ao Superior Tribunal de Justiça? Alberto Silva Franco — Não. A ministra Maria Thereza era vice-presidente do instituto quando foi nomeada para o STJ. O processo teve o seu deslanche a partir do instituto. O IBCCrim tinha representantes em quase todo o Brasil, e quase todos eles foram mobilizados junto às respectivas Ordens de Advogados de cada estado para que trouxessem um nome. A professora Maria Thereza já era muito conhecida na Faculdade de Direito da USP e tinha toda uma história como advogada, a mais brilhante possível. Então, coincidiu tudo isso e ela chegou lá. Nada é fruto só de esforço pessoal. Se não houver colaboração coletiva, nada acontece.
ConJur — Como defensor dos direitos humanos, qual pode ser a influência do novo ministro Luís Roberto Barroso no STF? Alberto Silva Franco — Ele é um homem brilhante, um constitucionalista fantástico. Nós temos lá também pessoas de extremo valor, como Celso de Mello, Marco Aurélio… São pessoas que conhecem profundamente a Constituição, os direitos fundamentais, os direitos humanos. O professor Barroso não vai ser o primeiro a falar nessa matéria no Supremo. Mas eu acho que ele vai servir de estímulo para outros que têm uma visão de mundo bem diferente.
ConJur — Falas recentes do presidente do Supremo, o ministro Joaquim Barbosa, têm classificado garantias dos réus como manobras protelatórias ou armas da impunidade. O garantismo é isso? Mariângela Gomes — Existe um movimento que quer demonizar o garantismo, associá-lo à protelação. Mas o garantismo é para todos. É um erro alguns setores da imprensa ou da população quererem associá-lo a isso. Quando falamos em garantismo, estamos tratando da valoração dos direitos e garantias individuais que não são só para o preso ou para o réu. É para todo mundo que, eventualmente, se encontre em uma situação de sofrer uma acusação. Alberto Silva Franco — A própria imprensa contribui para isso. Há programas de televisão que buscam mostrar a existência de impunidade absoluta. São os chamados “programas policiais”. Isso intranquiliza toda a população. Todo mundo se julga em condições de ser vítima, em algum momento, de alguma coisa. Quando dizemos que todos têm garantias dadas pela Constituição, de certo modo batemos de frente com os próprios meios de comunicação. Mariângela Gomes — As pessoas tendem a se identificar com a vítima, isso é instintivo. De fato, existem crimes que são chocantes. Mas a exploração disso pela mídia leva a população a se revoltar com eventuais direitos e garantias dos réus. O Direito Penal, o Processo Penal, existem justamente para que não haja esse instinto. Um sujeito matar uma criança e pegar 30 anos de prisão não é proporcional. Mas se fossem 50 ou 100 anos, também não iria ser suficiente. Se quisermos uma proporcionalidade absoluta, teremos de voltar à Lei de Talião.
ConJur — Qual sua opinião sobre práticas que o presidente do Supremo atribuiu recentemente os advogados: chicaneiros, preguiçosos e articuladores de conluios? Alberto Silva Franco — Eu não sei se o presidente do Supremo Tribunal Federal tem sempre razão quando faz suas declarações. Algumas guardam pertinência, outras, no meu modo de ver, são impertinentes. Não deveriam proceder de um presidente do Supremo, do qual se exige minimamente um equilíbrio. Tenho minhas dificuldades em aceitar tudo o que é falado pelo atual presidente.
ConJur — Apesar da rejeição da PEC 37, a possibilidade de o Ministério Público investigar ainda será definida pelo Supremo Tribunal Federal. Qual sua opinião sobre o assunto? Alberto Silva Franco — Já fui absolutamente contrário a qualquer investigação dirigida pelo Ministério Público. Mas acho, hoje, que em relação a determinados delitos ele deve ter poder investigatório. Porque se corre riscos de não se apurar nada diante de um poder econômico extremamente forte. Às vezes, a Polícia pode ser, de certo modo, estagnada pelo poder econômico, mas o Ministério Público tem mais possibilidade de resistência a esse poder. Mas isso dependeria de uma regulamentação. É preciso dar oportunidade à defesa para saber o que está se passando. Não é um poder investigatório absoluto.
ConJur — Quais delitos seria conveniente que o MP investigasse? Alberto Silva Franco — Os delitos financeiros. Fora isso, não. Mesmo porque o MP nem se interessaria por outros. Quem acredita que o MP vai apurar uma lesão corporal?
ConJur — Por que é que o MP é mais resistente ao poder econômico do que a Polícia? Alberto Silva Franco — Não estou dizendo nada contra a Polícia, por favor. Em tese, acho que os promotores e procuradores têm algumas garantias mais poderosas do que as garantias de que dispõe a autoridade policial. Eles não estão vinculados ao Executivo e têm garantias assemelhadas às do juiz: inamovibilidade, de irredutibilidade de vencimentos etc., que a Polícia não possui. Você não tem a mesma possibilidade de remover um membro do Ministério Público que tem para fazer com um delegado.
ConJur — Apesar de haver uma súmula vinculante garantindo acesso aos inquéritos policiais, em algumas situações o advogado ainda tem dificuldades para defender seu cliente. Justificativas como: “seu cliente não é investigado, mas testemunha”, ou “o inquérito não está aqui, está com o Ministério Público, ou está em outro lugar” são frequentes para se impedir que a defesa tome conhecimento do que está sendo apurado. Por que o direito de defesa ainda não é uma regra? Pedro Bueno — Ainda respiramos um pouco dos resquícios da ditadura, que é muito enraizada na prática policial. São exemplos os casos constantes de tortura nos meios policiais. Isso ainda é fruto de uma mentalidade que está sendo depurada. Se teve uma coisa que o regime militar conseguiu fazer foi destruir a academia, o pensamento livre. Restringir o acesso ao processo — que, constitucionalmente é uma exceção à regra da publicidade — é fruto de uma mentalidade repressora. É óbvio que o trabalho de investigação precisa manter um determinado nível de sigilo para poder frutificar lá adiante, mas o Direito Penal e o Processo Penal existem para limitar e conter um pouco esse afã de punir.
ConJur — O Congresso Nacional convive com a pressão de fazer leis cada vez mais duras. Uma pena maior inibe o crime? Alberto Silva Franco — Isso é o que mais assusta, essa apregoação do punitivismo absoluto. A lei penal não é sequer uma resposta eficiente, quanto mais a única resposta. Todo mundo acha que o Direito Penal resolve conflitos sociais ou conflitos de menor proporção. Mas o Direito Penal não serve para isso. Não é o antídoto para todos os problemas que o país possa apresentar. É inegável que as leis que endureceram penas que surgiram depois de clamor popular se deveram a casos de interesse da classe média, não a fatos ocorridos com a população pobre. A imprensa escolhe casos que possam ser contagiantes. E há outro detalhe importante: o crime tem uma força atrativa. Todo mundo acha que tem condições de falar sobre Direito Penal.
ConJur — A pena tem a função de punir ou de corrigir? Alberto Silva Franco — O Direito Penal é um mal necessário. Prender é uma coisa que se choca com a ideia mínima de liberdade que um ser humano precisa para sobreviver. Mas não há como retirar da sociedade pessoas que a molestem a não ser pela prisão. E se examinarmos a prisão, ela, de certo modo, é melhor do que já foi no passado. Antes, havia penas corporais. Mesmo assim, é difícil conseguir ressocializar o detento na ambiência penitenciária que temos hoje. No mundo ideal, o Direito Penal deve ressocializar. Mas é preciso haver condições para isso.
ConJur — Por isso existe a progressão de regime? Alberto Silva Franco — A execução tem que ter fases. Você não pode ter um regime fechado por todo o tempo de uma prisão. Se não, a pessoa não retoma os contatos para que volte à sociedade. Isso é um processo de longo prazo.
ConJur — O estado de São Paulo aprovou a lei que centraliza as execuções criminais. Isso é bom ou ruim? Mariângela Gomes — Vai distanciar as famílias em relação aos presos. Essas famílias não têm dinheiro para pagar uma passagem de ônibus para visitar o parente no fim de semana. Aí entram as facções criminosas, que têm ônibus e levam as famílias. Muitas vezes, o único jeito que uma mãe tem para ver o filho é pegando o ônibus do PCC. Isso cria um vínculo entre as famílias e a facção, que acaba suprindo uma lacuna que o Estado não supre.
ConJur — Juízes dizem que os presídios não têm ladrões de galinha. Que só fica preso quem comete crimes graves, como homicídio e sequestro. Nesse caso, penas alternativas resolvem? Alberto Silva Franco — Aproximadamente 50% dos presos no sistema prisional brasileiro são provisórios. Nossa superpopulação carcerária é de presos em relação aos quais a Justiça ainda não se manifestou. Além disso, a cifra negra em relação a homicídios é muito maior do que se pensa. Hoje, provavelmente, se apura em torno de 12% dos homicídios. E 8% chegariam até a Justiça e poderiam ser condenados. Que dizer, temos à solta no país 88% dos homicidas. Em relação ao estupro, é pior ainda, porque entra a questão de a vítima não querer dar notícia do fato. Se se observar bem, tem mais gente perigosa solta do que presa. O que leva ao assombroso raciocínio de que se tivéssemos que prender todos os que praticaram homicídios e estupros, o sistema prisional seria incapaz de absorvê-los. Porque nosso sistema prisional está superlotado com presos provisórios, muitos por causa de pequeno tráfico.
ConJur — O Tribunal de Justiça de São Paulo ainda é visto como um tribunal duro? Alberto Silva Franco — Não houve muita mudança no Tribunal de Justiça de São Paulo, que é um tribunal bastante conservador, do ponto de vista penal. Há algumas Câmaras constituídas por juízes com uma visão mais aberta. Pedro Bueno — O tribunal caminha um pouco em paralelo com a própria política do Poder Executivo, de manter uma linha dura, de ter uma política de segurança pública de repressão. Uma grande maioria de juízes que compõem o tribunal pensa de uma forma muito conservadora, muito punitivista.
ConJur — A legislação mais recente permite medidas cautelares alternativas à prisão. Isso não resolveu? Alberto Silva Franco — Esse projeto deu opções ao julgador para que não mande para a prisão pessoas em relação às quais se pode aplicar medidas substitutivas de caráter cautelar. Por exemplo, a fiança recebeu um novo alento. Porque tinha, basicamente, desaparecido. Só que o valor que se fixa para a fiança é um valor que uma pessoa comum, do povo, não tem condições de pagar. Então, a ideia que se tem é que falta uma preparação dos juízes para a aplicação das medidas cautelares substitutivas. Há um número imenso de cautelares substitutivas que impediriam essa massa de mais de 200 mil pessoas presas provisoriamente.
ConJur — Pode-se atribuir parte do problema ao tamanho das penas? Alberto Silva Franco — Esse é outro dado que eu considero de uma importância capital. Para o juiz, é muito simples aplicar o tempo da pena. Ele vai ao Código e vê que aquele crime tem pena de um a quatro anos. E aplica pena de dois anos. Mas só quem sofre a pena sabe qual a dimensão desse tempo. O juiz põe a sua assinatura lá e ponto final. Precisa haver uma motivação muito forte para que o juiz agrave a pena acima do mínimo. É uma operação mecânica para o juiz e um sofrimento a mais para o condenado.
ConJur — Já se tornou rotina os mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça libertarem ou concederem progressão de regime a presos que há muito não deveriam estar no presídio. Por que esse acompanhamento continua defasado? Alberto Silva Franco — O que falta é um serviço adequado, em termos de internet, de acompanhamento das penas. Isso é uma deficiência que, urgentemente, precisa ser corrigida. O próprio sistema deveria avisar o dia em que a pessoa deve sair. Mas isso não é feito porque não se dá muita importância à execução da pena. Ela é tida como algo menos nobre. O juiz que vai para a Execução não é considerado um grande juiz. E agora surge esse grande perigo de o próprio tribunal deslocar a execução do local onde está sendo feita para centralizá-la, montando uma equipe de juízes, que podem ser nomeados e destituídos. Retira-se a execução penal do seu juiz natural para entregá-la a um grupo de juízes que pode, a qualquer momento, ser desligado desse serviço. Isso é muito sério. É a mesma coisa que se faz com o flagrante em São Paulo. É um grupo de juízes que examina os flagrantes. Com a execução é centralizada, se há uma pessoa em Presidente Prudente, em Presidente Bernardes, as pessoas terão que se deslocar para São Paulo para despachar com esses juízes. Além disso, o juiz do processo acaba ficando longe do local onde é cumprida a pena, não vai visitar. A Lei de Execução Penal foi o fim de uma luta, a luta pela jurisdicionalização da execução penal. A execução penal não pode ser uma atividade administrativa. Ela é jurisdicional. Só que agora estamos retrocedendo para um tipo de administração, mesmo que feita pelo Judiciário.
ConJur — Qual sua opinião sobre o projeto de novo Código Penal, em tramitação no Congresso? Alberto Silva Franco — Aquilo é uma coisa horrível. A reforma faz pressupor que seja uma coisa muito discutida pela sociedade. Não se pode fazer algo semelhante em meses, para atender aos interesses de alguns senadores que querem deixar a função política dizendo que foram autores do Código Penal. A comunidade inteira, os meios acadêmicos, os meios de comunicação, todos devem opinar sobre o Código. E aqui, nós corremos um grave risco. Nos países europeus, todos os Códigos Penais decorrem de lei delegada. Isto é, o Congresso delega uma comissão de juristas para a feitura do Código. E, feito esse Código, o Congresso aprova ou rejeita. Ele não pode emendar. Aqui, não. Você pode emendar. Então, esse projeto é apresentado e começam a surgir emendas, as mais díspares e loucas possíveis.
ConJur — Pode dar exemplos? Alberto Silva Franco — Eles acabaram com o livramento condicional. Simplesmente excluíram. E maus tratos a animais passam a ser punidos mais gravemente do que maus tratos a pessoas.
ConJur — Os cursos do IBCCrim são bastante procurados, principalmente os feitos em parceria com a Universidade de Coimbra. Qual o motivo? Mariângela Gomes — O IBCCrim acabou se tornando uma referência nas Ciências Criminais como um todo. Não só para os advogados, mas também para promotores e juízes que queiram se aperfeiçoar. Não estamos vinculados a nenhuma universidade nem ao poder público. Mas temos algumas parcerias que, ao longo dos anos, vêm nos dando respaldo e sendo um atrativo para o público. Talvez a mais tradicional e a mais forte parceria seja com a Universidade de Coimbra. São três cursos que costumam ser realizados a cada dois anos: o de Direitos Fundamentais; o de Teoria Geral do Crime e o de Direito Penal Econômico. São ministrados em anos intercalados. Um ano tem o de Direitos Fundamentais e de Teoria Geral do Crime — que é, por acaso — em 2013, e o outro tem Direito Penal Econômico. Neste ano, começamos em junho o curso de Direitos Fundamentais. Teoria Geral do Crime começa em agosto.
ConJur — Como funciona a parceria? Mariângela Gomes — O certificado é dado tanto por Coimbra quanto pelo IBCCrim. Como o instituto não é uma instituição de ensino, nosso certificado não vale como pós-graduação no Brasil, apenas como especialização. Mas vale como pós-graduação na Europa, pela Universidade de Coimbra. É um título internacional. Alguns alunos que fazem nosso curso depois vão estudar em Coimbra e aproveitam os créditos. Acaba sendo parte de um mestrado, por exemplo. O curso é ministrado por professores portugueses e brasileiros.
ConJur — Como começou esse vínculo? Alberto Silva Franco — Em 1994, quando nós fizemos o primeiro seminário internacional. Em 1993, houve um congresso da Associação de Direito Penal Internacional, no Rio de Janeiro. E, nessa ocasião, nós conhecemos o professor Jorge Figueiredo Dias, titular de Direito Penal da Universidade de Coimbra. Há mais de dez anos ele não vinha a São Paulo. Não havia nenhum tipo de seminário. Em 1994, fizemos o nosso primeiro, e ele compareceu. Aí, sucessivamente, íamos fazendo seminários e estreitando relações com os que trabalhavam em Coimbra. A primeira versão do curso de Direito Penal Econômico deve ter sido em 2000. Nosso primeiro seminário, em 1994, ficou marcado por uma discussão ferrenha entre o professor Klaus Tiedemann, da Alemanha, e o professor René Ariel Dotti, sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Tiedemann era favorável à responsabilidade penal da pessoa jurídica, e o Dotti, contra. Ninguém estava habituado a ouvir isso aqui. Hoje estamos no 19º seminário, com quase mil pessoas que vêm de todo o Brasil.
ConJur — Por que Coimbra? Alberto Silva Franco — É um grande centro jurídico, não só em Direito Penal Econômico, mas um centro irradiador da Ciência Penal na língua portuguesa. Coimbra tem uma história, é uma das primeiras faculdades europeias. Os brasileiros, na época do Império, os que eram de vida mais rica, iam para lá estudar. Esse contato nosso com Coimbra permitiu que um número muito grande de brasileiros voltasse a fazer cursos em Portugal.
ConJur — O IBCCrim também é famoso por sua biblioteca… Mariângela Gomes — É a mais atualizada em Ciências Penais e Criminais da América Latina. Não é muito grande, mas é muito atualizada. Muitas pessoas se associam ao Instituto para usar a biblioteca, mesmo não morando em São Paulo. Nós temos um serviço que remete cópias pelo correio. Alberto Silva Franco — A razão principal é porque nós nos fixamos mais em revistas do que propriamente livros. As revistas trazem sempre as últimas novidades doutrinárias. Em breve, estarão todas digitalizadas.
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