O inimigo número 1 da falta de liberdade na América, a “terra da liberdade”

Imagine o clichê de um estrangeiro homossexual no Rio de Janeiro: sarado, bronzeado, frequentador das areias de Ipanema de dia e das boates de Copacabana à noite. Pense agora em algo completamente oposto e talvez você se aproxime do perfil e do cotidiano, no Brasil, do jornalista norte-americano Glenn Greenwald, responsável pela reportagem que revelou ao mundo, no início do mês, o sistema de espionagem do governo Barack Obama em telefones, e-mails e perfis nas redes sociais de milhões de cidadãos nos Estados Unidos.

Para começar, Greenwald, cujo blog está vinculado ao jornal britânico The Guardian, não está aqui para informar sobre o Brasil e sabe muito pouco do que se passa ao redor. Na terça-feira 18, quando o encontrei, as manifestações se espraiavam pelas principais capitais, a maior delas no centro do Rio, mas ele tinha uma vaga noção sobre os acontecimentos. Seus olhos estão voltados para o país natal na tela do laptop. Greenwald é um analista político norte-americano que circunstancialmente vive no Brasil, não um correspondente estrangeiro. Em 2012, foi considerado pelo site Daily Beast e pela revista Newsweek um dos dez mais influentes dos Estados Unidos na atualidade.

O lugar onde o jornalista vive também é dos mais improváveis. Greenwald marcou nosso primeiro encontro na Vista Chinesa, famoso mirante turístico no alto da Floresta da Tijuca, por uma razão, na verdade, prática: sua casa fica tão escondida nas proximidades da Estrada da Gávea Pequena que mesmo os taxistas conhecedores da região têm dificuldade para encontrá-la. Precisamos, a fotógrafa e eu, seguir seu carro até lá. Greenwald para em frente a uma casa simples, porém confortável, no meio da Mata Atlântica, com uma cachoeira na entrada. Lá ele montou um lar ao lado do namorado brasileiro, David Miranda, e dez cachorros recolhidos pelas ruas. Até o clima é diferente do Rio à beira-mar. Faz frio e há uma lareira na sala.

O jornalista de 46 anos chegou ao Brasil, em 2005, após terminar um relacionamento de 11 anos e um longo ciclo como advogado constitucionalista. Nascido em Nova York e criado na Flórida, Greenwald define-se como um ser urbano que ainda estranha viver cercado de macacos e se espanta com o tamanho das jacas. “Como é que isso nunca caiu na cabeça e matou alguém?” Há algum tempo colocou no YouTube um vídeo sobre um saruê que surgiu em sua casa e lhe pareceu o bicho mais estranho sobre a Terra.

A razão pela qual alguém assim decidiu viver no meio da floresta e a milhares de quilômetros de seu principal objeto de análise, os EUA, é justamente o relacionamento amoroso. “No meu país, David não teria cidadania. No Brasil, o governo dá visto a estrangeiros em uma relação homossexual”, explica. A orientação sexual não fez dele um alvo de críticas homofóbicas daqueles incomodados com suas denúncias contra o governo Obama. “Nos EUA, isso não funciona mais”, diz. Há outra, porém, recorrente: “Uma pessoa que mora no Brasil tem o direito de reclamar?” Greenwald fica furioso. “Sinto raiva. Não moro lá por causa de uma lei que não permite que meu namorado tenha cidadania, não por opção.”

Quando decidiu ficar no Brasil, Greenwald criou o blog e obteve repercussão rápida. Logo passou a ser publicado pela respeitada revista online Salon. Um de seus primeiros temas foram os grampos empreendidos pelo governo George W. Bush sem autorização judicial. Segundo Greenwald, o jornal The New York Times sabia do caso antes da reeleição de Bush, mas escondeu de seus leitores durante um ano, a pedido do governo, por questões de segurança nacional.

“Eles têm orgulho de fazer isso. Falam: ‘O governo diz que somos responsáveis’. Mas jornalistas de verdade não querem ver o governo feliz, e sim zangado”, opina. Segundo o analista, por posições como esta o jornalismo norte-americano perdeu credibilidade. Durante a Guerra do Iraque, a mídia, em sua opinião, pecou por omissão.

“Nos anos 1960 e 1970, os jornalistas importantes eram os mais engajados, mas isso mudou completamente nas últimas décadas. O único modelo aceito passou a ser o do jornalista ‘imparcial’, ‘objetivo’. Isso não existe. Todo ser humano tem opinião, e jornalistas são humanos. O que existe é jornalista honesto e desonesto”, defende. “Eu não aceito essas regras. A internet mudou muito isso. Para sobreviver na rede é preciso ter um relacionamento com o leitor, saber o que ele quer.”

Essa relação de confiança com quem lê se expressa diretamente no modelo adotado pelo jornalista para poder ser independente: ele recebe doações, um esquema chamado de reader funding (ou financiamento via leitor). Também é pago pelo Guardian, mas possui um contrato de plena liberdade editorial com o jornal. Ou seja, o diário britânico não interfere no conteúdo do blog.

Na varanda de sua casa, Greenwald trabalha com dois laptops ao mesmo tempo. Um deles, conectado à internet, e o outro, totalmente virgem de ligações com a rede, para evitar o monitoramento pelo governo dos EUA. Os documentos recebidos do ex-agente da CIA Edward Snowden sobre a espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA, em inglês) estão criptografados em vários pen drives e são conectados apenas no laptop sem ligação com a internet. Toda segurança é pouca, explica, pois, se o pen drive for inserido no laptop com conexão à rede, é possível rastrear seu conteúdo.

O objetivo de Greenwald e de seus parceiros de reportagem, a documentarista Laura Poitras e o chefe da sucursal do Guardian em Washington, Ewen McAskill, é impedir o governo norte-americano de descobrir qual é o teor exato dos documentos. Segundo ele, muita coisa ainda virá à tona. No domingo 16, o jornal britânico revelou que o Reino Unido também espionou telefonemas e e-mails de diplomatas estrangeiros durante a reunião do G-20, em 2009. A denúncia causou constrangimento aos países participantes do G-8, reunidos na Irlanda do Norte.

Em 2010, Greenwald tinha revelado ao mundo as condições sub-humanas em que se encontra preso o soldado Bradley Manning, responsável por vazar documentos secretos dos EUA ao site WikiLeaks. Mas trabalhar com papéis criptografados não era bem a sua praia. Quando recebeu o primeiro e-mail de Snowden, em dezembro do ano passado, naquela mesma varanda carioca, o informante acabou por desistir, diante da dificuldade do jornalista em aprender como decodificá-los. Só depois de ­Snowden ter contatado a documentarista Poitras é que Greenwald percebeu a seriedade do caso.

Obviamente, Snowden, a exemplo de Manning, tornou-se alvo de perseguição do governo dos EUA. Surpreendente, porém, é a existência de cidadãos que também defendem a prisão do jornalista. O senador republicano Peter King justificou, na conservadora Fox News, que Greenwald deveria ser preso por colocar a vida dos norte-americanos em risco. Um articulista doWashington Post, o outro jornal que publicou as denúncias, concordou com o político. “Sim, publicar segredos da NSA é crime”, escreveu o colunista Marc Thiessen.

O advogado de Greenwald o aconselhou a não viajar para os EUA por enquanto, e o jornalista acredita que o governo brasileiro não o entregaria, mas a situação o deixa ainda mais indignado com o governo Obama. “Não vou falar que é pior do que Bush por causa da tortura. Mas, em termos de imprensa, é muito mais agressivo, não só por admitir monitorar jornalistas como por processar criminalmente fontes. Há sete fontes processadas atualmente pelo governo Obama, mais do que todos os presidentes juntos.” Um lado engraçado dessa história toda é o fato de Greenwald ser o primeiro a ter se refugiado no Rio de Janeiro antes e não depois de se tornar um “fora da lei”.

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