Os desajustes da polícia brasileira

Cidadania

As recentes manifestações populares em todo o Brasil reacenderam o debate sobre o papel de nossas forças policiais. Muitas manchetes de jornais e opiniões de especialistas destacaram a desmilitarização da polícia como tema central.

Na verdade, essa questão é apenas a ponta do iceberg. Somente uma abordagem abrangente, a partir de uma visão global e sistêmica do problema, poderá resultar em uma melhoria efetiva da estrutura policial brasileira. Entre outros pontos, três merecem destaque como símbolos de nosso atraso, na comparação com as principais polícias do mundo:

1) A polícia brasileira é a única que investiga por meio de um procedimento burocrático, inquisitivo e ineficiente: o inquérito policial. Enquanto nos outros países a polícia procura implantar medidas para agilizar e integrar o ciclo de investigação, no Brasil insistimos num instrumento que anda na contramão da moderna técnica de investigação por apresentar baixíssimos resultados na elucidação de crimes e na produção de provas materiais e periciais. Ademais, pela rigidez de seus procedimentos, o inquérito policial contribui para afastar os policiais das ruas e as ruas dos policiais, já que exigências cartorárias acabam prevalecendo sobre o escopo do trabalho investigativo.

2) O Brasil também é o único país em que a chefia da investigação policial é reservada a uma determinada categoria profissional. Enquanto aqui limitamos o acesso, a gerência e a inteligência policiais aos bacharéis em Direito, a polícia nos demais países do mundo recruta profissionais com formação em diferentes especializações. Isso porque o combate ao crime organizado, em mundo baseado no conhecimento, precisa ser feito por uma equipe multidisciplinar. O FBI, a polícia federal americana, por exemplo, seleciona profissionais de diversas áreas, como: Contabilidade, Finanças, Línguas Estrangeiras, Direito, Ciências, Informáticas, etc.

3) No Brasil não temos uma carreira policial, mas sim diferentes unidades policiais (civis e militares) integradas por comandantes e comandados. Essas estruturas, centralizadoras e pouco flexíveis, não possibilitam o desenvolvimento dos trabalhadores do setor, pois, na contramão dos princípios da administração moderna, não permitem que o talento e o mérito sejam reconhecidos. Além disso, contribuem para a ineficiência, a corrupção e a desmotivação funcional, já que a falta de perspectivas profissionais resulta em baixa qualidade na prestação de serviços à sociedade. Do ponto de vista gerencial, destaca-se a falta de sinergia entre as nossas forças policiais, já que o modelo atual estimula a competição, o retrabalho e o aumento de custos decorrentes da separação das atividades de polícia judiciária (Polícia Civil) e de polícia ostensiva (Polícia Militar).

Em resumo, o Brasil precisa reorganizar o seu sistema policial, adotando princípios testados e aprovados em outros países do mundo. Não é possível que os nossos indicadores de desempenho sejam mantidos nos patamares atuais. Afinal, basta comparar o índice de elucidação dos crimes de homicídio no Brasil, de menos de 8%, com o de outros países (90% no Reino Unido, 80% na França e 65% nos Estados Unidos), para se verificar a ineficiência do nosso sistema policial. Como consequência deletéria deste quadro, temos que a quase certeza da impunidade leva ao aumento da violência e da criminalidade no País.

Vale destacar ainda que, em quase todo o mundo, a polícia possui uma estrutura de ciclo completo, isto é, que concentra numa mesma corporação policial as atividades de prevenção aos delitos, de investigação policial e de polícia judiciária. Além disso, a atividade policial é exercida por civis, os quais ingressam na carreira para realizar funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, podem se desenvolver atuando em cargos de investigação e, posteriormente, alcançando cargos de direção na mesma polícia.

Infelizmente ainda estamos muito distantes destas práticas modernas de fazer polícia. Existem, inclusive, muitas propostas em debate no Congresso caminhando no sentido contrário, ou seja, aprofundando o modelo atual. Há pouco tempo foi aprovada a Lei nº 12.830/13, e se tentou aprovar a PEC 37, o que só não aconteceu pela pressão exercida pelo Ministério Público e pelas manifestações populares contra a proposta. No entanto, outras emendas em trâmite tentam afastar, cada vez mais, a polícia de suas funções típicas, por meio de projetos que representam o interesse de grupos e não os da sociedade brasileira.

Pode-se concluir afirmando que o dever de casa é imenso para que tenhamos no Brasil uma força policial compatível com os desafios do século XXI. Mas, com a mobilização e a participação de todos, é possível vislumbrar um futuro melhor. Quando teremos uma polícia de Estado e não de governos. Quando teremos uma maior integração entre a Polícia, o Ministério Público e a Justiça. Quando, enfim, teremos os direitos de cidadania consagrados como fundamentos do Estado Democrático de Direito, inscritos em nossa Constituição Federais, verdadeiramente respeitados e protegidos.

comentário no post “A PEC-51, a carreira única e a manutenção de castas”

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