Seleções da memória: o debate sobre a anistia e a transição no Brasil

Cícero Araújo

Nas reflexões teóricas sobre o tema da Memória, constata-se que, no fundo, toda memória é seletiva. Essa observação ganha ainda mais relevância quando a Memória se torna objeto de conflito político. Se há algo que salta à vista nas reflexões teóricas sobre o tema da Memória, tão em voga hoje em dia, é a constatação de que, no fundo, toda memória é seletiva. Não há “Memória” em sentido absoluto, isto é, a presentificação absoluta do passado, porque isso significaria a negação da própria Memória. Se a Memória há de cumprir uma função terapêutica – individual ou coletiva – é exatamente porque ela seleciona, e assim proporciona uma ressignificação do que passou.

Essa observação ganha ainda mais relevância quando a Memória se torna objeto de conflito político. No Brasil, e em todos os países que em décadas recentes viveram processos de saída de regimes autoritários, a questão adquiriu enorme interesse, desde que a mudança de regime político implicou políticas, raramente consensuais, de acerto de contas com o passado: políticas de anistia, julgamentos, reparações, abertura de arquivos, enfim, aquilo que a literatura internacional tem chamado de “justiça de transição”. De todos os termos e práticas empregados nesse caso, talvez o mais emblemático seja mesmo a Anistia, não só por sua relação etimológica e histórica com a Memória, mas também porque, no plano político-moral, trata das condições de superação de um trauma que, ocorrido num passado não muito remoto, perdura como um problema do presente e do futuro. Os processos de anistia, por sua vez, vinculam-se de imediato a graves deliberações institucionais e debates públicos: o trauma com que lida não é de natureza individual ou privada, mas atravessa a comunidade política, ainda que nem todos os seus membros (às vezes, muito pelo contrário) tenham sido diretamente afetados por ele.

Porém, tais processos são especialmente graves por uma outra razão. É que eles nos obrigam a confrontar uma mediação política dificílima, entre as exigências igualmente fortes da justiça e da responsabilidade. As deliberações e debates dos processos de anistia, portanto, nunca são exclusivamente jurídicos ou morais, por envolverem um conflito de fundo que vai muito além da contenda entre os perpetradores das injustiças e suas vítimas. Está em jogo o futuro da comunidade como um todo e da saúde cívica de suas instituições, e isso dá ensejo a uma luta política que, certamente, mobiliza a linguagem moral e as instituições e técnicas jurídicas, mas as transcende.  Essa mediação complicada que é exigida da Anistia enquanto ato político, suscita também uma questão que diz respeito diretamente à Memória como instituição social – a restauração do equilíbrio da Lembrança e do Esquecimento. No fundo, a disputa política da Anistia é uma questão a respeito da fronteira – impossível de ser fixada a priori, e muito menos de sê-lo para todo e sempre – que uma comunidade vai traçar entre esses dois termos, traçado que efetivamente faz da Memória aquilo que ela é: uma seleção.

A transição brasileira para a democracia

Ao refletirmos sobre a cumplicidade das políticas de Memória com os processos hoje denominados “justiça de transição”, nada mais enganoso do que as comparações estreitas entre países cujas experiências autoritárias, e as respectivas saídas para a democracia, foram muito distintas entre si. Estreitas, isto é, sem uma devida consideração das trajetórias de cada país e suas peculiaridades.  Uma justiça de transição que não leve em conta de que transição se está falando (sua densidade histórica) só conseguirá produzir avaliações jurídicas ocas, por não ser capaz de colocar as leis, e os direitos humanos nelas reivindicados, em diálogo com o fluxo da vida.  Fixemo-nos no caso brasileiro que é, afinal, o que nos interessa.

Quem estudar com cuidado a transição política a que se submeteu a última experiência autoritária do país, vai constatar que, além de resistir a comparações simplistas com outros países, esse processo dificilmente admite um juízo peremptório e uniforme sobre sua natureza, objetivos e qualidades político-morais. Pois, considerada em si mesma, a transição nunca foi um processo linear, sofrendo importantes inflexões de ritmo e direção ao longo do tempo: como as vidas humanas que a protagonizaram, a transição brasileira foi uma experiência verdadeiramente fluida. Assim, dizer, sem mais, que ela foi uma “transação”, um “arreglo das elites”, uma reprise do (suposto) atavismo nacional à “conciliação”, só faz amordaçar os fatos históricos no laço curto de uma visão pré-concebida, por mais bem intencionada que seja. E isso tem conseqüências práticas, porque projeta sobre o presente e o futuro a mesma simplificação. Além da justiça e da responsabilidade, quem acaba perdendo é a própria Memória.

Nossa transição para a democracia foi longa, a mais longa entre aqueles países da América Latina que, mais ou menos na mesma época, tiveram regimes autoritários. Além de longa, a passagem final para um novo regime não se fez por ruptura, como ocorreu na Argentina, cuja ditadura entrou em rápido colapso após uma guerra perdida em condições vexaminosas. Por outro lado, embora a iniciativa do processo tenha sido do próprio regime autoritário, este não conseguiu mantê-lo sob controle do começo ao fim, à diferença do que, aproximadamente, aconteceu com o Chile de Pinochet. Para que pudéssemos dizer que a iniciativa permaneceu sempre nas mãos da ditadura – ou de uma hipotética elite fechada, feita de uma mistura de próceres do governo e uma oposição “arregladora” – o regime, ou essa elite, deveria ter ganho os principais lances em que tentou institucionalizar um regime de fachada liberal a partir de 1974, ano em que o general Geisel assume a presidência da República e inicia a transição. O que se viu foi bem outra coisa: uma sucessão de subversões desse objetivo, na medida em que a oposição ao regime, lançando mão das regras da pretendida institucionalização, fazia-as reverterem contra os resultados esperados.

Já no final de 1974 esse dado invade a cena política de forma quase espetacular, com a derrota esmagadora do partido do regime nas eleições para o Senado, surpreendendo até mesmo as expectativas do partido de oposição. O dado se reafirma posteriormente, quando a ditadura começa a emendar caprichosamente suas próprias regras, mesmo assim não conseguindo evitar sucessivos avanços da oposição, dentro e fora do terreno eleitoral. E assim se deu, não porque os líderes do então MDB simplesmente o quisessem, mas por conta de uma onda democratizante que foi empolgando o país, permitindo na prática não só a derrota dos casuísmos da ditadura, mas também a ultrapassagem das hesitações daquelas lideranças. Ainda depois, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral inventado pelo regime, essa mesma onda vai confrontar, e mais uma vez subverter, as tentativas de esvaziar o conteúdo democrático de reformas institucionais profundas, as quais culminam na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988. Justamente por subestimar essa autêntica empolgação popular por uma nova experiência democrática, as previsões pessimistas a respeito do processo constituinte vão ser cabalmente negadas por seu resultado concreto: uma Carta de teor progressista sem paralelo na história do país – que o digam os principais detratores da atual Constituição, as estridentes vozes conservadoras, embora não apenas elas.

A primeira lei da Anistia e seus desdobramentos

O que dizer então dos processos de Anistia havidos no país durante essa longa transição? Podemos detectar neles mais ou menos a mesma dinâmica descrita acima. Porém, com a especificidade de representarem o ponto de maior resistência que os agentes de um regime autoritário podem oferecer contra um futuro democrático. Lidar com isso é excruciante pois, de um lado, temos a face mais odiosa e repugnante da ditadura, a “guerra suja” contra os opositores, que até do ponto de vista da legalidade autoritária tem de ser feita às escuras, nos “porões”. A demanda por justiça, aqui, é tão gritante quanto se possa imaginar. De outro lado, há a vida que deseja continuar, e deve continuar, apesar desse passado terrível: os presos políticos que desejam a liberdade, os exilados e banidos que desejam voltar, os clandestinos que anseiam pelo retorno à luz do dia – enfim, a liberdade em seu sentido mais elementar, pré-condição do restabelecimento da normalidade legal e política.

Os homens dos porões sabem da repugnância geral de que são objeto e, exatamente por isso, procuram com todas as forças salvaguardar-se do clamor de justiça, que no caso deles seria, em aparência, o mais evidente e indiscutível. Todavia, ao contrário, é precisamente onde a resistência do autoritarismo é maior, o lugar em que todos os longos fios do regime se unem como um só feixe, graças à íntima, ainda que oculta, cumplicidade entre os porões e todos os seus andares superiores. Repare-se a arma covarde, porém eficaz, de que lançam mão: fazer o futuro refém do passado. O uso dessa arma é quase intuitivo, embora repugnante, mas quem não se dá conta do jogo delicadíssimo que isso implica, jamais compreenderá com suficiência a complexidade, a sinuosidade e as idas e vindas dos processos de Anistia que o país teve de enfrentar. Numa palavra, não conseguirá penetrar fundo a própria História, lamentavelmente deixando a Memória muito mais seletiva do que poderia ser.

Em agosto de 1979, o governo do general João Baptista Figueiredo toma a iniciativa de aprovar um projeto de Anistia no Congresso Nacional. Na verdade, a bandeira da Anistia já pertencia há um bom tempo à oposição: começou em círculos mais restritos no início da década de 70 e foi ganhando corpo, até que por volta de 1978, a questão se tornou o ponto de junção mais forte de todos os setores oposicionistas. Como bem o disse, na época, o exilado Fernando Gabeira, de Estocolmo, onde vivia: “Não conheço em todo o período de militância na denúncia da ditadura brasileira no Exterior nenhuma palavra de ordem que tenha nos unido tanto quanto a anistia”. Os estrategistas do regime trataram então de se apropriar parcialmente da questão, percebendo com clareza o risco a que expunha o projeto da “abertura gradual”. Era, portanto, necessário fazer um movimento de descompressão e, ao mesmo tempo, aproveitar a iniciativa para antecipar-se a pressões então menos urgentes, mas que poderiam se tornar incontornáveis no futuro. De qualquer modo, havia muito consenso de que, naquele específico contexto, a pauta fundamental era a liberação de todos os opositores, consagrada na bandeira da “anistia ampla, geral e irrestrita”, e não a captura dos facínoras. Não por acaso, o regime tratou de vendê-la ao preço mais caro possível: regateando cada prisioneiro, marginalizando os encriminados por “terrorismo” e, finalmente, ao mexer as peças do jogo perverso do refém, “anistiando” por antecipação os torturadores. Também não por acaso, nenhum setor oposicionista fez dessa última questão um ponto incontornável, desde que a evidente prioridade recaía sobre o retorno de todos os alijados pelo autoritarismo à vida pública e legal, cientes que estavam do ganho líquido que propiciava para a continuidade da luta democrática.

Houve, sim, vozes, não exatamente dissonantes, mas de protesto, registrando as graves omissões e distorções da lei aprovada no Congresso em relação aos crimes da ditadura – documento da OAB, carta de prisioneiros políticos, discursos parlamentares etc – as quais, porém, não tinham o propósito de bloquear o que estava em curso. Quem, aliás, ousaria fazê-lo em sã consciência? Nenhuma voz, na época, cogitou seriamente de se desviar da pauta então prioritária da Anistia, tanto que o passo seguinte do movimento foi ultrapassar os limites da lei em relação aos prisioneiros, continuando essa batalha até que o último deles fosse libertado – o que de fato se alcançou, decorridos menos de três meses após a sanção da lei pelo general-presidente.

(É verdade que já havia vozes tentando aplicar a tese geral da “transição transada” ao caso em tela. Naquele exato momento, porém, eram muito tímidas. Sabemos que essas vozes cresceram depois, ganhando até respeitabilidade acadêmica. Note-se, todavia: depois que a deliberação excruciantesobre o que fazer havia sido feita; depois que a responsabilidade da decisão já não mais precisava ser reclamada por ninguém.)

Falamos em processos da Anistia porque, é claro, a luta pelo resgate da justiça, que ela encarna, não terminou na lei de 1979. Tal como ocorreu no processo mais amplo da transição, os limites pretendidos pelo regime nessa questão foram sendo ultrapassados. Na prática, a lei foi submetida a sucessivas revisões: mais molecularmente, nos tribunais, e mais sinteticamente, nos centros decisórios nacionais – primeiro, por iniciativa da própria Assembleía Nacional Constituinte, depois, por iniciativa do Poder Executivo, durante o governo FHC (Lei dos Desaparecidos, reconhecimento oficial da responsabilidade do Estado pelos crimes do regime autoritário, direito à reparação econômica) e, agora, no governo Lula, graças às ações da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Não se trata de descrever cada um desses momentos neste espaço. Se nos concentramos na lei de 1979, é para indicar que ali já estavam colocados os problemas e dilemas fundamentais, aliás os mesmos que se apresentam a toda ação política grave. Eles perduram, e perdurarão, enquanto a própria questão da Anistia for relevante, como é, tanto que o debate acirrado sobre o seu significado e seus possíveis caminhos prossegue.

O que está em jogo agora

Mas qual a peculiaridade da etapa atual dessa longa jornada? Aparentemente, vivemos uma fase residual, os estertores da luta. De um lado, estão os que permaneceram nos sucessivos filtros dos processos, as vítimas em seu sentido mais literalmente violento e brutal: os assassinados nas prisões, os desaparecidos, os torturados… e, claro, seus familiares; de outro, os perpetradores de tais enormidades e seus cúmplices, todos eles poupados da justiça penal, graças, outra vez, ao jogo do refém. Porém, boa parte já desaparecida ou reduzida ao opróbrio que merecem, derrotada em qualquer outro sentido – ético, histórico, cognitivo, junto à opinião pública etc – exceto o da punição legal.

Esse quadro, no entanto, é enganoso. O resíduo pode até ser quantitativo, mas a batalha que temos à frente é decisiva, e talvez a que mais exigirá paciência e sutileza. Por que decisiva? Trata-se, agora, de reintegrar com vistas ao longo prazo: as pessoas, sem dúvida, mas principalmente as instituições. Reintegrá-las ao seio da comunidade democrática, ao cerne de seus princípios e esperanças. Porém, entre as instituições nacionais a reintegrar, aquela que durante mais de um século foi recorrente instrumento de todo tipo de autoritarismo, de seus mentores intelectuais e seus executores – diga-se de passagem, não apenas da direita: as Forças Armadas. Este é o desafio: nossa democracia permanecerá insegura enquanto essa instituição não for efetivamente ganha para a causa. A responsabilidade, portanto, é dupla. Não podemos deixar que o assunto seja silenciado; ao mesmo tempo, cabe-nos ser contundentes críticos de toda linha de raciocínio, toda iniciativa e toda encaminhamento que facilite o trabalho dos autoritários de plantão, no sentido de manter aquela instituição isolada, impermeável à persuasão democrática – em outras palavras, de mantê-la disponível, para o momento oportuno, como recurso letal contra a democracia.

Dizemos “persuasão”, porque a palavra traduz o sentido essencial da luta a ser travada. Fala-se de Memória e, com igual veemência, fala-se também de Verdade. Mas se de fato a batalha da Anistia nos dias que correm é pela Memória-Verdade, então lembremos que a verdade é um bem que não se desfruta extorquindo-o dos que precisam conhecê-la.  A verdade não se obtém por coação, muito menos por confissão e punição. A verdade é maiêutica, socrática: ela precisa de parteiras, e não de doutrinadores, que arrogam já conhecê-la plenamente e pretendem, do alto de sua arrogância, enfiá-la guela abaixo dos que ainda não a perceberam. Daí a tarefa da persuasão, e a paciência que ela requer.

Em suma, não é nem mais nos tribunais e nas batalhas judiciais, por barulhentas que sejam, que o embate que importa se dará. Se realmente o processo de hoje se tornou muito mais sutil, então o dever dos que almejam a verdade, em si mesma e pelo serviço que presta à causa democrática, é deslocar o foco, dos veredictos para a demonstração minuciosa dos fatos históricos, na sua discussão pública e no diálogo persistente com e nas Forças Armadas. Isso, até o dia em que, a partir de dentro, por iniciativa própria – e de que outra forma se poderia sinceramente fazê-lo? – a instituição venha a público pedir o perdão que deve ao Brasil. Perdão que significará o reencontro do equilíbrio da Lembrança e do Esquecimento, a Memória restaurada.

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