HORA DE MUDAR
Gilmar Mendes foi procurador da República, advogado-geral da União e hoje ocupa uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. Como presidente do CNJ, foi uma metralhadora de ideias. Sua campanha para dar emprego a egressos do sistema penal é descrita pelo também ministro do STF, Dias Toffoli, como “a mais importante política de direitos humanos já implementada no Brasil”. Gilmar tornou-se conhecido por sua disposição para embates e por seu conhecimento constitucional. Mas sua trajetória mostra característica que não costuma ser objeto de notícias a seu respeito: ele é estudioso dos sistemas de gestão, da racionalidade de meios e efetividade nos fins.
Na AGU baixou grande número de súmulas para que os advogados da União deixassem de cuidar de casos irrelevantes para concentrar atenção e energia nos grandes casos. Ao chegar ao STF, dedicou-se na adoção dos mecanismos de efeitos vinculantes, foi um dos mentores da repercussão geral, do amicus curiae e da ADPF.
No momento em que passeatas e tumultos acuaram as autoridades da República, Gilmar Mendes é cético em relação a medidas tópicas sacadas de afogadilho para aplacar a ira da multidão. E insiste, como num mantra, no seu diagnóstico: os grandes dramas da população subordinam-se à ineficiência do poder público. E essa ineficiência é um problema de falta de gestão.
Assim, não será aumentando a pena para o crime de corrupção ou classificando-o como hediondo que algo mudará no funcionamento das instituições. O ideal é que se faça o caminho contrário: a partir de ações pontuais para enfrentar os problemas de mau funcionamento da máquina pública é que se descobrem os gargalos e, a partir desse diagnóstico, propõem-se medidas para corrigir as distorções.
A experiência já mostrou resultados em convênios firmados entre o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Ministério da Justiça. É o caso da Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que depois de analisar 135 mil inquéritos que investigam homicídios dolosos instaurados no Brasil até o final de 2007, descobriu que apenas 43 mil foram concluídos. Dos concluídos, pouco mais de oito mil se transformaram em denúncias. Ou seja, mais de 80% dos inquéritos de homicídio foram arquivados. A partir do diagnóstico, as autoridades passaram a adotar as soluções para enfrentar o problema.
Gilmar Mendes estava à frente do CNJ quando a Enasp foi criada. E defende que esse modelo seja estendido para todos os setores da administração pública. “É necessária uma integração de vontades do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para dar efetividade à Justiça criminal, que tem graves problemas de funcionalidade”, afirma. “Dessas ações surgem questionamentos, por exemplo, quanto à adequada dotação de recursos humanos”, completa.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o ministro disse que o altíssimo grau de judicialização das controvérsias no Brasil é uma das raízes do problema e que sem respostas administrativas adequadas a demanda tende a se tornar infindável. Mendes sugere, por exemplo, a instituição de um serviço civil no país e a adoção efetiva de um sistema de advocacia voluntária para atender a cidadãos carentes. Os bacharéis em Direito ou advogados recém-formados poderiam fazer uma espécie de residência para dar vazão às demandas. “A questão é vital no momento atual, em que nós temos uma brutal carência. O país tem cinco mil defensores públicos para atender a massa de demanda da população carente em todos os temas, em questões de família, de Direito Civil, etc. Só presos nós temos mais de 500 mil no país”, ressalta o ministro.
Em suma, mais efetivo do que legislar, seria aproveitar o momento para aparar arestas na área administrativa que provocam a falta de funcionalidade dos serviços públicos no país. Como mais um exemplo, o ministro cita que há no Supremo 5 mil conflitos federativos, entre a União e os estados. Muitos deles provocados mais por desorganização da burocracia do que por controvérsias relevantes.
Entre outras sugestões para enfrentar o excesso de judicialização, Gilmar Mendes propõe o fortalecimento dos Procons e a criação, dentro das agências reguladoras, de modelos de ouvidoria que dirimissem controvérsias entre consumidores e prestadores de serviços públicos. “O momento é bastante oportuno para estudar essas propostas. Há certo desconforto da alma porque as pessoas têm uma realidade muito dura, especialmente nas suas relações com os serviços públicos. Aqueles que dependem do serviço público de transporte, de saúde ou educação, se veem às voltas com enormes dificuldades. É preciso estimular essas soluções em busca de respostas efetivas. Do contrário, a judicialização é a única alternativa. E, muitas vezes, ela é ineficiente”.
Leia a entrevista ConJur — Em meio às respostas para as manifestações que tomaram o país nas últimas semanas, a Câmara aprovou regime de urgência na tramitação do projeto de lei que torna a corrupção crime hediondo. Mudar a classificação de um crime ou aumentar a pena para o criminoso, sem medidas que possam tornar efetiva a persecução penal, adianta? Gilmar Mendes — Eu tenho a impressão que isso é o tradicional apelo, que não é incomum aqui ou em outros lugares, da chamada legislação simbólica. Isso tem sido objeto de estudo na própria teoria do Direito. É comum, diante de quadros graves, crimes graves, jogar para o público uma solução melífica. “Então, vamos agora agravar as penas”. Na Alemanha, apontou-se a reação aos casos de derramamento de óleo no Mar do Norte. “Ah, agora vamos tratar isso de forma mais grave”. Entre nós é a história do crime hediondo, em algum momento também é a pena de morte. Nós já tivemos deputados que anunciavam a toda hora emendas e até plebiscito para aprovar a pena de morte.
ConJur — No que isso resulta, na prática? Mendes — Até pouco tempo a jurisprudência do Supremo validava a ideia de que o cumprimento da pena dar-se-ia em regime integralmente fechado nos casos de condenação por crime hediondo. Hoje, nem isso. Pode resultar eventualmente na elevação de pena e cumprimento, talvez, de um período mais longo, se for o caso, em regime fechado. Agora, as questões que se colocam nas ruas, que as pessoas reivindicam, são cobranças contra a impunidade. Quantos inquéritos, investigações se transformam em denúncias? Quantas denúncias viram condenações? Essa é a questão.
ConJur — Quantas condenações são efetivamente executadas… Mendes — Isso. Temos, por exemplo, um elenco de mandados de prisão não cumpridos, de condenações e de prisões provisórias. A rigor, seria importante aproveitar o momento para avançar nesse quadro. É mais difícil porque exige um concerto entre vários setores, mas que se fizesse uma integração de vontades do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para dar efetividade à Justiça criminal, que tem graves problemas de funcionalidade.
ConJur — O senhor pode dar exemplos? Mendes — Basta ver que há prescrição, e isso são dados do Conselho Nacional de Justiça, em crimes da competência do Tribunal do Júri. Estamos falando, portanto, basicamente de homicídio e de tentativa de homicídio, casos de crimes dolosos contra a vida. Temos prescrição nestes casos. Por quê? Porque não se consegue julgar em tempo adequado. Nós estamos julgando casos com o do Carandiru e outros semelhantes depois de 20 anos. Então vamos priorizar a Justiça criminal, dar-lhe condições, automatizar, diagnosticar o que falta. Esse seria o caminho. O CNJ já vem fazendo isso, por exemplo, nos crimes chamados atos de improbidade. Dando prioridade ao acompanhamento desses processos. É preciso verificar qual é a estrutura adequada para as varas criminais. Nesse sentido, me parece que um diálogo entre autoridades do Ministério da Justiça, CNJ e CNMP, contribuiria muito para o avanço. Até porque esses órgãos são, hoje, gestores do sistema.
ConJur — Já há diagnósticos sobre inquéritos policiais? Mendes — Nos casos de homicídios, a Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, parceria firmada em 2010 entre o CNMP, o CNJ e o Ministério da Justiça) fixou a meta de levantar a quantidade de inquéritos em que se apura a autoria e materialidade do crime. Separaram os inquéritos que investigam homicídio e estudaram os mais antigos. A taxa de resolução é absurdamente baixa [leia reportagem sobre o tema: Brasil arquiva 80% das investigações de homicídios]. Isso nos casos de homicídios. Imagine em relação aos inquéritos que investigam corrupção.
ConJur — Esse diagnóstico foi obtido exatamente por conta da ação integrada. Mendes — Quando estávamos à frente do CNJ, pensamos nessa estratégia nacional de segurança pública e demos prioridade ao estudo e resolução dessas ações. O acordo com o Ministério da Justiça foi assinado na gestão do ministro Luís Paulo Barreto. O foco era a solução de crimes graves. Portanto, o homicídio. A ideia era levar os inquéritos à conclusão, porque a taxa de desvendamento, de conclusão, é muito baixa. Isso revela que a questão é basicamente de gestão. Claro que a partir dessas ações se percebe a necessidade de alguns aperfeiçoamentos legislativos. No que diz respeito ao júri, por exemplo, hoje se exige o trânsito em julgado da sentença de pronúncia. E, muitas vezes, a defesa fica esgrimindo com recursos para simplesmente evitar o trânsito em julgado e retardar a conclusão. Então, talvez fosse o caso de fazer um ajuste na legislação para permitir que de fato houvesse o julgamento em tempo adequado. É necessário dar continuidade ao trabalho de metas do CNJ, que acabou flexibilizado hoje.
ConJur — Hoje, é quase uma simples recomendação. Mendes — O interessante é que, à época, se dizia que o volume de trabalho estava mantendo os juízes um tanto quanto estropiados, que estavam sendo forçados a trabalhar muito. Mas o que vimos foi uma cooperação enorme. E o resultado foi prático, de dar andamento a processos que estavam parados há muito tempo. Evidentemente que isso, depois, permite um diagnóstico, permite avaliar a situação de determinadas varas que podem estar com uma distribuição descompensada, distorções que ocorrem no sistema. Isso ajuda a Justiça estadual a conhecer os seus próprios gargalos. Essa é uma grande contribuição.
ConJur — Ou seja, é mais efetivo partir de ações concretas, que ataquem e diagnostiquem os problemas, para então propor soluções? Mendes — Sim, dessas ações surgem questionamentos, por exemplo, quanto à adequada dotação de recursos humanos. Há um projeto interessante da Polícia Federal no que diz respeito à informatização do inquérito como processo eletrônico. Isso poderia ser expandido para toda Justiça e com subsídios do próprio governo federal. Hoje nós temos recursos suficientes, no próprio Ministério das Ciências da Tecnologia. Mas o ponto é que a própria ação administrativa permite o diagnóstico. Quando fixamos as metas de julgamento, descobrimos que no Rio de Janeiro os inventários não terminavam.
ConJur — Por quê? Mendes — Porque havia uma exigência tributária. Nós separamos. O processo está terminado. A questão tributária é outra discussão. Mas os processos estavam lá como inconclusos, embora já tivessem sentença. Havia o entendimento de que enquanto não houvesse o pagamento do tributo não se arquivavam os autos. A vantagem desse trabalho, mutirão, meta, é exatamente diagnosticar problemas como esses.
ConJur — Há outros exemplos? Mendes — Detectamos em alguns estados a questão da falta de exames de DNA em investigação de paternidade. Os processos ficavam parados porque não havia laboratório público e ninguém que arcasse com os custos do exame. É preciso tomar medidas. O exame de DNA pode ser feito em uma universidade pública, por exemplo, por meio de convênios administrativos. Então, são problemas que aparecem e podem ser atacados com as medidas corretas a partir desse tipo de ação.
ConJur — Como o senhor vê a discussão em torno do foro privilegiado? Mendes — Acho válido examinar a redução do rol das autoridades com prerrogativa de foro pela função. Mas não me parece justificada a supressão do mecanismo sob o argumento de obter maior efetividade da justiça criminal. Nós pudemos ver a funcionalidade do sistema com o julgamento do chamado mensalão.
ConJur — Esse julgamento não atrapalhou demais o funcionamento do Supremo? Isso não foi prejudicial? Mendes — Mas, por outro lado, se estivesse a cargo da justiça de primeiro grau não terminaria nunca. Se a justiça criminal fosse mais célere e eficiente não teria casos em julgamento por décadas, como há hoje. Agora, é claro que o tribunal tem sido prudente ao declinar da competência quanto a acusados que não têm prerrogativa de foro. Por outro lado, a PEC que pretende retirar a competência do STF pode levar a outra armadilha, que seria levar esses casos para a justiça estadual, onde os políticos têm grande influência. É uma questão digna de maior análise.
ConJur — Como o senhor vê o caso do uso de jatinhos da FAB para fins particulares? Mendes — Tenho impressão que há certo exagero na exploração desse assunto. Talvez fosse mais justo discutir os custos do Legislativo. Verificar se o orçamento das duas casas está de acordo com suas reais necessidades. Mas imaginar que o presidente da Câmara dos Deputados ou o presidente do Senado, eventuais substitutos na Presidência da República não possam usar aeronaves em compromissos me parece exagerado. É preciso tomar certo cuidado para não cair no populismo simplório e irracional. Eu sempre imaginei que os presidentes da Câmara, do Senado ou do STF tivessem essa prerrogativa por razões de segurança. Mas acho que esse aspecto está sendo ignorado.
ConJur — O fim da vitaliciedade de juízes (PEC 53) nos termos propostos no Congresso reduziria o grau de desvios na Justiça? Mendes — Aqui também vejo um grave equívoco. Tanto mais quando se contempla a possibilidade de se romper a vitaliciedade pela via administrativa. O que se pode admitir, isso sim, é tornar o rito judicial para essa questão mais funcional. Agora, impensável imaginar que o instituto da vitaliciedade, uma garantia fundamental para o jurisdicionado, seja posto abaixo. Ao contrário, deve ser valorizado.
ConJur — O senhor já lançou uma ideia de se criar no país o serviço civil, como alternativa ou não ao serviço militar obrigatório. Como seria isso? Mendes — Um país com perfil tão diversificado como o Brasil poderia estimular um tipo de serviço civil, que fosse por alguns meses, mas que estivesse nas mais diversas áreas, como na da assistência judiciária. Médicos poderiam atuar na área de perícia, por exemplo. Estariam desenvolvendo a sua habilidade profissional e ao mesmo tempo prestando um serviço de relevante interesse social. Poderiam ser vinculados a determinadas instituições ou organizações sociais não governamentais. Não precisariam estar necessariamente vinculados ao serviço público, mas prestando uma atividade social.
ConJur — Especificamente na área jurídica, bacharéis e estudantes, ou advogados recém-formados, poderiam atuar? Mendes — Sempre defendi a ideia da advocacia voluntária, que é o modelo já praticado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, nos juizados especiais federais. Como não há defensores públicos em número suficiente para atender a todos os carentes, o tribunal coloca as suas instalações à disposição, seleciona pessoas qualificadas para atender quem procura os juizados e dá uma assistência adequada. O CNJ chegou a aprovar resolução nesse sentido. É uma iniciativa bastante positiva que poderia estar conexa com a ideia do serviço civil. Seria extremamente interessante. A questão é vital no momento atual, em que nós temos uma brutal carência. O país tem 5 mil defensores públicos para atender a massa de demanda da população carente em todos os temas, em questões de família, de Direito Civil, etc. Só presos nós temos mais de 500 mil no país. A maioria é carente. Logo, esse quadro é insuficiente se levarmos em conta somente a área penal. Isso sem levar em conta a distribuição dos cargos em âmbito nacional.
ConJur — Haveria, de fato, acesso à Justiça… Mendes — Se houvesse um trabalho de articulação com a advocacia voluntária, que tivesse também a presença de pessoas que já cumpriram parte do seu curso, creio que nós daríamos um salto enorme. Meu sonho é que pudéssemos dizer: “Há advogados trabalhando em cada delegacia, em cada presídio”. Creio que nós mudaríamos de estágio em termos de direitos humanos. E eles poderiam estar vinculados a organizações não governamentais e supervisionados pela Defensoria Pública, mas atuando na realização desses direitos básicos.
ConJur — Seria uma espécie de residência para o bacharel em Direito? Mendes — Sim. Poderia ser um ponto para qualificação nos concursos públicos que fazem, até no Exame de Ordem por conta do compromisso social que traduziria essa ação. E com resultados práticos, porque desenvolveriam as pessoas, que teriam sensibilidade para essa temática. E hoje nós temos um modelo exitoso, no TRF-4. Funciona bem nos juizados especiais federais. Universidades fazem convênios e levam professores, estagiários e advogados vinculados àquele programa. Háadvogados recém-formados que vão adquirir experiência.
ConJur — Mesmo que essas ideias sejam colocadas em prática, os números do CNJ mostram que há mais de 90 milhões de processos em andamento no país. É praticamente um processo para cada dois habitantes. Como diminuir esse grau de litigiosidade? Mendes — Temos que ter programas de mudança dessa cultura. Mas para isso é preciso que desenvolvamos alternativas. Só para se ter uma ideia, hoje, nós temos no Supremo, ou tínhamos até recentemente, 5 mil conflitos federativos. São basicamente litígios entre a União e estados. Quem vê esse retrato pensa: “É uma federação em frangalhos. Está todo mundo guerreando”. Mas quando entramos no detalhe verificamos que, em muitos casos, se trata de discussões sobre certidões negativas de débito que os entes federados precisam para celebrar um empréstimo. Muitas vezes, um empréstimo que é até avalizado pela União, incentivado pela União, junto ao próprio BNDES.
ConJur — Os órgãos internos da própria União criam entraves? Mendes — Por conta de inscrições nos sistemas de cadastro da União, como o Cadin (Cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal) e o Cauc (Cadastro Único de Convênios). E aí temos de conceder liminares em Mandado de Segurança ou Ação Cautelar. Temos a toda hora esse tipo de discussão. A falta de prestação de direitos, do fornecimento de determinados bens, assistência social ou matéria de Previdência Social estimulam essa litigiosidade. Temos que integrar mais os sistemas para diminuir a judicialização. Alguns órgãos não cumprem bem essa função. As agências reguladoras deveriam dirimir controvérsias, seja nas situações concretas, expedindo orientações vinculantes para os prestadores de serviço, seja de forma geral, arbitrando as situações. Mas isso não ocorre.
ConJur — Os processos que discutem serviços de telefonia são os campeões, não? Mendes — Em termos de expressão numérica, um dos maiores motivos de litigiosidade são os casos de telefonia, pulso, tarifa básica e coisa desse tipo. E na medida em que a sociedade vai sendo integrada por outras camadas, com o desenvolvimento dessa chamada nova classe média, se nós não estruturarmos novas formas de enfrentamento dessas relações, vamos ter muito mais demandas. É muito provável que essa população traga ao Judiciário seus pleitos relativos ao Código de Defesa do Consumidor. Nós temos uma boa experiência com o Procon. Deveríamos fortalecer as decisões do Procon, pensar soluções administrativas. É preciso que o Judiciário melhore o seu modelo de gestão, seja critico com relação a isso, mas que também pense em alternativas juntamente com outras instituições para que possamos mudar o modelo de judicialização exacerbada. Nenhuma sociedade pode se organizar com quase 100 milhões de processos. E não adianta criar mais estruturas para responder a essa demanda, porque ela será infindável.
ConJur — Seria viável criar uma espécie de Procons dentro das agências reguladoras? Mendes — As agências precisam ser vitalizadas. Talvez, no âmbito da própria administração, criar modelos de ouvidoria que dirimissem controvérsia. Veja o exemplo que nós temos hoje com a questão de saúde. É necessário o sujeito obter uma liminar por conta de um tratamento básico? Isso não poderia ser encaminhado pela via das ouvidorias, dos órgãos que supervisionam esse serviço? Hoje existem câmaras de conciliação no âmbito da Advocacia-Geral da União e é preciso estimular essas soluções em busca de respostas efetivas. Do contrário, a judicialização é a única alternativa. E, muitas vezes, ela é ineficiente.
ConJur — Não seria importante regular ações coletivas ou pensar de forma diferente as ações civis públicas, para enfrentar demandas de massa com mais efetividade? Mendes — No que diz respeito às ações civis públicas, seria importante discutirmos políticas públicas. Não pensar em soluções imediatas, mas talvez discutir a implementação de políticas públicas no tempo. Isso envolve outra noção no que diz respeito à questão política. É necessário discutir modelos, contribuir para que determinados serviços sejam desenvolvidos. Uma construção interessante poderia se desenvolver a partir de uma reformulação da legislação da ação civil pública, com a participação do Ministério Público e do próprio Judiciário. Mas é preciso ter uma compreensão de que não se está dando um provimento concreto ou oferecendo um bem da vida pretendido, mas contribuindo para essa avaliação.
ConJur — Tudo, então, passa por uma avaliação estratégica de efetividade? Mendes — Sim. Hoje temos um grande instrumento para fazer isso, que é o CNJ. O Judiciário também pode contribuir muito no que diz respeito à questão da política criminal não só julgando os processos, mas evitando também as medidas desnecessárias, aplicando a legislação penal de forma adequada, evitando o abuso das prisões provisórias. O departamento de monitoramento do sistema prisional do CNJ precisa ser vitalizado. Há mecanismos eletrônicos que permitem o controle de todo o sistema. Eu vi, por exemplo, na audiência pública que nós realizamos para discutir os regimes aberto e semiaberto de detenção, a exposição da secretária de Justiça do Paraná, Maria Tereza Gomes, que tem toda visão do seu sistema a partir de um programa informatizado. Ela acompanha todo o sistema prisional: sabe quantos presos existem, quantos estão para sair, quais as medidas que estão em atraso por conta, às vezes, da não decisão por parte da Justiça. Acredito que o CNJ poderia ter essa visão e fazer até correições virtuais. Nós temos um grave, gravíssimo problema de gestão.
ConJur — Bastaria adotar o modelo em território nacional, não? Mendes — É uma das ideias. Copiar modelos de sucesso. Um órgão central como o CNJ poderia levar esse controle do Paraná para o país inteiro. O CNJ e o CNMP instituíram algumas metas. A primeira delas foi o controle nacional de mandados de prisão, efetivado inclusive por meio de lei. Funcionou maravilhosamente bem. O sistema hoje está totalmente interligado. É possível saber que alguém no Distrito Federal é procurado com mandado de prisão da Bahia ou do Amazonas. Por que, então, não instituir um cadastro nacional de presos? A lei já permite isso.
ConJur — Neste caso, já há ao menos um diagnóstico por conta dos mutirões carcerários inaugurados na sua gestão frente ao CNJ. Quais falhas eles revelaram? Mendes — As mais diversas. Por exemplo, pessoas com alvará de soltura há 30 ou 60 dias que não haviam sido soltas. Isso ainda acontece. Veja o tamanho do desrespeito com os direitos humanos para presos que deixam de evoluir na progressão de regime porque não há decisão judicial. Do ponto de vista institucional, tenho defendido também a necessidade de que haja, pelo menos onde isso for possível, a apresentação imediata do preso ao juiz, como forma até de evitar o abuso das prisões provisórias. Isso está na Convenção Interamericana de Direitos Humanos e é uma prática comum em vários modelos constitucionais. Já avançamos razoavelmente exigindo que haja um prazo para o juiz decidir sobre o flagrante. Essas medidas já constam de resoluções do próprio CNJ e estão na legislação. Ou seja, o foco deve ser a gestão integrada. Trabalhar com a ideia de uma estratégia de segurança que envolva as autoridades de segurança, a administração, Judiciário e o Ministério Público. Com a existência de órgãos de organização como o CNMP e o CNJ, essa tarefa se tornou muito mais fácil, porque eles podem decidir de forma vinculante para seus próprios âmbitos.
ConJur — Sem isso, a litigiosidade tende a aumentar. Com a iminência da aprovação da Lei de Defesa do Usuário de Serviços Públicos, é crível que as pessoas passem a acionar ainda mais a Justiça contra o estado? Mendes — Talvez valesse a pena ter grupo para avaliação, no próprio comitê de elaboração da lei, ter pessoas que representem a visão do Judiciário. Não precisa ser necessariamente juízes, mas também ex-juízes, um corpo técnico de assessores que tenha experiência e a visão da Justiça, para apostar em soluções que não levassem, necessariamente, à judicialização. É necessário pensar em mecanismos de solução administrativa. A figura do ombudsman é sempre razoável, de alguém que possa arbitrar nos conflitos. Alguns sistemas na Europa adotam a figura do ombudsman até para as relações privadas. Seguros de bancos passam a ter um supervisor das relações, que faz criticas sobre as práticas e recomenda novas ações. Talvez pudéssemos ter algo semelhante especialmente no âmbito do serviço público. Depois da reforma administrativa, houve essa previsão no parágrafo 3º do artigo 37 da Constituição Federal, para que haja disciplina legal de questões ligadas à qualidade do serviço público, a forma de prestação, e questões até ligadas à participação do usuário do serviço público na prestação do serviço ou no seu controle.
ConJur — É possível instituir formas de incentivo ao servidor público por meio da meritocracia? Mendes — Temos de insistir na avaliação do serviço público e, neste caso, é fundamental a meritocracia. O texto constitucional contém elementos para qualificar o ocupante dos cargos em comissão. Isso precisa ser examinado para não partidarizar necessariamente a ocupação desses cargos. É preciso exigir determinada qualificação. O ocupante do cargo pode ser até integrante de uma dada organização, mas que antes de tudo seja um técnico que atenda àquele requisito. A profissionalização do serviço público e a cobrança de metas de expansão, de melhorias, que a própria ordem constitucional permite, resultaria positivo.
ConJur — É justo que dois servidores públicos que ocupem o mesmo cargo recebam o mesmo salário quando um tem compromisso com a qualidade de seu trabalho e o outro não? É possível criar critérios objetivos para avaliar a qualidade e instituir gradações salariais ou prêmios por desempenho? Mendes — Isso tem sido pensado, principalmente no âmbito dos estados. Considero possível, sim, modelos de gratificação, desde que se criem critérios objetivos de avaliação. Pelo menos para a equipe, para o grupo, para o setor que logrou cumprir uma meta ou até a superou. É preciso realmente introduzir essa avaliação. A reforma administrativa foi muito feliz no que diz respeito a vários desses mecanismos. O momento é bastante oportuno para estudar essas propostas. Há certo desconforto da alma porque as pessoas têm uma realidade muito dura, especialmente nas suas relações com os serviços públicos. Aqueles que dependem do serviço público de transporte, de saúde ou educação, se veem às voltas com enormes dificuldades. Muitas vezes, discutimos questões do gênero apenas na perspectiva de melhoria de remuneração dos integrantes de uma dada corporação. Não é só isso. Há exemplos de remunerações bastante compensadoras, elevadas por vezes, e o serviço não funciona. É preciso estar bastante atento à necessidade de nos avaliarmos, termos metas e avaliarmos os serviços que nós prestamos. E o que fazer para melhorá-lo.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
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