Por: Vladimir Aras
Há algumas décadas, a Itália lançou-se na luta contra a máfia. O Pool Antimafia, liderado pelos procuradores Giovane Falcone, Paolo Borselino e outros magistrados do Pubblico Ministero italiano, teve grandes êxitos, mas não acabou com as máfias locais, sediadas na Sicília, em Nápoles, na Calábria e noutras partes daquela península. Em busca da sobrevivência nos novos tempos, duas dessas máfias, a Camorra e a ‘Ndrangheta têm sido das mais ativas e criativas. Narcotráfico não está na moda. Dedicam-se à coleta de lixo e à adulteração de alimentos em grande escala… É a máfia na cozinha, na nossa sala de jantar ou no café da manhã… Desses novos negócios advêm graves problemas ambientais, devido à inadequada destinação do lixo e à contaminação de mananciais, e de saúde, devido à entrega a consumo de alimentos adulterados. Apesar dos esforços da ONU, do Conselho da Europa, da União Europeia e de outras organizações internacionais, para a uniformização de técnicas avançadas de persecução penal e da legislação criminal e a intensificação da cooperação internacional em matéria penal contra a criminalidade organizada, certas entidades criminosas, globais ou não, estão cada vez mais insidiosas e poderosas. Sequestram, matam, estupram, roubam. Fazem o que querem; não respeitam ninguém. No continente americano, México, Honduras, El Salvador e Guatemala são exemplos de países conflagrados por cartéis, maras e pela delinquência violenta organizada, subsidiada pelo narcotráfico, que tem nos Estados Unidos o seu maior mercado consumidor. No Brasil, já temos uma máfia em gestação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), com seus negócios no narcotráfico e no “mercado” de bens roubados. Não tardará e o PCC descobrirá empreendimentos criminosos mais proveitosos e menos arriscados, já que a redução de riscos do negócio e o aumento dos lucros são necessidades “capitalistas”. E o que importa a uma organização criminosa é a vantagem e sua fruição. Os tentáculos do PCC já alcançam países vizinhos, como o Paraguai, a Bolívia e a Colômbia, de onde vêm ou por onde passam a maconha, a cocaína e as armas de fogo que são levadas para os centros urbanos e agora também para a zona rural de vários Estados brasileiros. Os consumidores ajudam a manter a vitalidade dos negócios do bando. Seja numa rave, num baile, numa cobertura ou numa favela, é tudo uma festa. Todo mundo está feliz, mas é para chorar. No tabuleiro do crime, vida e saúde também estão em jogo. E a “partida” daqui para uma melhor (ou uma pior, depende da vítima) não é só por motivo de susto, de bala ou vício, no dizer de Caetano, ou por “tiro, porrada e bomba”, como diria uma das maiores pensadores do País na atualidade. Fazemos inveja à Alemanha, como visto, na filosofia e no futebol. Embora não tenhamos ainda “tradição” no campo das fraudes consolidadas na indústria de alimentos, já vimos algo semelhante com casos de adulteração de leite (!), praticada por quadrilhas de produtores e distribuidores irresponsáveis, o que configura o crime do artigo 272 do CP, cuja pena vai de 4 a 8 anos. É um “bom” negócio. Quem sabe diferenciar, na xícara, o leite de vaca do leite “batizado” pelo capeta? Quem sabe diferenciar, só pelo gosto, os “Cafés do Brasil” dos seus sucedâneos mais baratos, torrados e moídos, pelos quais pagamos caro, com baratas e gravetos dentro? Nesse ramo ilegal não tem ”café-com-leite”. Só há gente esperta e mal intencionada, com pouca fé no bem comum, mas que se entrega sem perder o sono ao deleite do dinheiro fácil. No Brasil, não se respeita nem o leite das crianças. Os menos modernos lembrarão que em meados dos anos 1980 venderam por aqui leite em pó importado, que fora contaminado pelo vazamento de radiação da usina nuclear de Chernobyl. Para quem tomou, só restou chorar sobre o leite envenenado. Chuva ácida. E na esteira dessas práticas criminosas, organizadas ou não, vem a corrupção, agindo como um câncer em processo de metástase no corpo da Administração Pública. A grana para o “cafezinho” sempre aparece no roteiro. Com isso, os responsáveis por prevenir, controlar, fiscalizar, policiar, vigiar e punir abandonam seu dever e abrem as portas, os portões e as porteiras para a consumação de esquemas de toda ordem, desde os mais singelos aos mais tenebrosos. Tomemos em conta esses crimes, o tráfico pessoas e de órgãos humanos e outras formas de criminalidade mais “tradicional” e veremos um quadro desalentador, com órgãos de persecução criminal debilitados no campo orçamentário e no quesito recursos humanos, ou tecnicamente incapazes de reação adequada. A ineficiência orgânica ou a incompetência técnica e o aliciamento pela corrupção impedem o Estado de assegurar as liberdades públicas e os demais direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive o direito difuso à segurança pública. Em grande medida, o caos que reina nesse campo tem outros vetores bem conhecidos. Nosso modelo de Polícia remonta ao Império e precisa ser revisto. Ademais, ainda lidamos no Brasil com formas burocráticas e cartoriais de investigação criminal, como o inquérito policial (de atribuição da Polícia Civil ou da Polícia Federal) e seu fac-símile o procedimento investigatório criminal (PIC), este presidido pelo Ministério Público; e nos sujeitamos a um processo penal com resquícios inquisitivos, que remontam ao século XIX, quando não às Ordenações Filipinas. É alimento mofado que se oferece no altar de Têmis, a tal deusa da Justiça, que eu nunca vi. O desalinho é grande. Os ponteiros pesam. O gongo já soou e estamos meio que parados, sem corda. Nosso Código de Processo Penal entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942. Já é um senhor provecto, idoso, septuagenário. Os novos tempos convidam-no à aposentadoria. Bem caberia uma compulsória, já que o velho diploma passou dos 70 anos e não atende às necessidades da persecução de crimes complexos e de outros da sociedade de risco, cada vez mais violentos, intrincados e, muitas vezes, de cunho transnacional. Quando o CPP passou a valer em 1942, o Brasil era uma ditadura. O golpe do Estado Novo ocorrera em 1937, suprimindo direitos de 41 milhões de habitantes, estimados pelo censo de 1940. Que código de processo penal receberíamos de presente de um ditador? Tínhamos uma economia agrária, com população predominantemente rural. Cerca de 28 milhões de pessoas moravam no campo. Os crimes mais graves eram o roubo, o estupro e o abigeato. Homicídios, se eram em número ponderável, não chegavam nem perto da cifra escandalosa de mais de 50 mil vidas violentamente suprimidas por ano, hoje, na Terra de Santa Cruz (quantas cruzes!), algo quase igual às perdas militares dos Estados Unidos da América em todos os vinte anos da Guerra do Vietnã! É um espanto. De 1955 a 1975, morreram 58.209 soldados americanos naquela sangrenta campanha militar, que mobilizou massas em várias partes dos Estados Unidos, para exigir de Washington o fim da guerra. Aqui no Brasil só se marcha no Carnaval e movimento popular só dos quadris, ao som de samba, pagode, arrocha, axé, funk ou vanerão. Todo mundo dança. Temos hoje um Vietnã por ano. A mobilização cívica de junho de 2013 foi um espasmo. Naquele ano, no Brasil, 56.348 pessoas foram vítimas de homicídio, latrocínio (roubo com resultado morte) e lesão corporal com resultado morte. Nas cifras não computei os crimes de trânsito, que matam e aleijam outras 50 mil pessoas por ano. Na 2ª Guerra Mundial, que para os norte-americanos durou de 1941 a 1945, os Estados Unidos perderam 405.399 soldados. Comparativamente, entre 2002 e 2012, 556 mil brasileiros foram vítimas de homicídio! Se prosseguirmos no ritmo de 2013 (56 mil pessoas/ano), em menos de uma década teremos perdido outro contingente semelhante, meio milhão de vidas, mas em “tempos de paz”. O quadro é estarrecedor e, para investigar e processar esses mais de 50 mil homicídios anuais, temos o antiquado inquérito policial, que só permite a elucidação de 5% desses crimes de morte, e o moroso e ineficiente rito do júri, com suas duas etapas processuais (o iuditium accusationis ou sumário e o iuditium causae ou plenário), que atrasam julgamentos, que só acabam ocorrendo – quando ocorrem – depois de uma década ou mais. Resultado? Estamos hoje julgando uma cifra ínfima dos responsáveis pelas milhares de mortes do início do século XXI. E o legislador ainda inova para pior. A pretexto de reformar o júri para melhorá-lo, uma lei de 2008 incluiu um quesito genérico e obrigatório, que deve ser submetido pelo juiz togado aos sete julgadores do fato. “O jurado absolve o réu?”. Isto depois de os membros do conselho de sentença já terem afirmado “sim” às perguntas quanto à materialidade (o fato criminoso em si) e quanto à autoria (quem o cometeu). É muito cafuné processual para escusar Sua Excelência o Réu. Muitos dos autores dessa carnificina (mais de meio milhão de vidas ceifadas pela violência) estão presos, provisoriamente. Outros não. Os criminosos em geral que já estão atrás das grades enfrentam um quadro dantesco e infernal. Apesar da existência de unidades prisionais decentes em vários Estados do Brasil, o quadro geral é de um deserto de esperanças, salpicado por alguns oásis de decência. Apesar da Lei de Execução Penal e dos tratados internacionais de que o Brasil é parte, nossas cadeias, na verdade fábricas de crime e de revolta funcionam a todo vapor, gerando mais delinquência e mais violência. Segundo dados do CNJ, 563.526 mil brasileiros cumpriam pena no sistema prisional em 2014. Outros 147.937 estão em “prisão domiciliar” (!), modalidade que ninguém fiscaliza de verdade, já que não existe pessoal para isto e faltam tornozeleiras eletrônicas em quase todos os Estados do País. Muitas prisões estão superlotadas e direitos são violados. O déficit de alojamento no sistema é hoje da ordem de 354 mil vagas. Para piorar, há 373.991 mandados de prisão em aberto, conforme o Banco Nacional de Mandados de Prisão. Onde colocar tanta gente e ressocializá-los de forma digna e humana? Por outro lado, como atender às expectativas das vítimas e de suas famílias e proteger a população da reiteração criminosa desses 300 mil que deveriam estar presos? Nessas duas dimensões, algo precisa ser feito urgentemente. Todas essas pessoas ainda soltas deveriam mesmo ser presas? Todos os hoje presos devem permanecer onde estão? Há alternativas no sistema penal. Poderíamos pensar em descriminalização de certas condutas de menor lesividade; na ampliação da possibilidade de acordos penais não-prisionais; na adoção do princípio da oportunidade da ação penal e na sua articulação com práticas da Justiça Restaurativa; e também na intensificação do uso de penas alternativas, sem deixar de dar tratamento sério às medidas cautelares não-prisionais, porque o que se tem hoje é uma farsa. Ninguém fiscaliza; ninguém cumpre. Se não há dúvidas de que o inquérito policial é cartorial e ineficiente e sendo certo também que a execução penal é caótica e desumana, estamos diante de uma gravíssima crise sistêmica. O alfa e ômega do modelo brasileiro de persecução criminal estão em xeque. Seu miolo não é melhor. Sabe a pão adormecido. Não serve para torrada nem para vatapá. É indigesto. E, como diriam os portugueses, manter as coisas como estão é um autogol, disparar contra a própria meta. Um tiro na testa. Na hora de decidir o que fazer com uma investigação criminal concluída a contento, promotores de Justiça e procuradores da República dizem aleluia! E logo são premidos pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal, que se baseia na utopia totalitária de que nenhum crime deve permanecer impune (nec delicta maneant impunita). Tolerância zero. Aqui sempre foi assim. Está na lei de 1942. Mas em grande parte do mundo “juridicamente civilizado” já se adotam à larga critérios de oportunidade da ação penal, no que se chama em língua inglesa de “prosecutorial discretion”, a nossa discricionariedade regrada. Trata-se da faculdade concedida ao Ministério Público de deixar de perseguir certas infrações, especialmente as de pequeno e médio potencial ofensivo, quando faltantes certas condições objetivas ou quando presentes certos requisitos previamente estabelecidos em lei. Critérios bem definidos e adequadamente implantados de “prosecutorial discretion” ajudariam a eliminar causas criminais desnecessárias ou fadadas ao insucesso e a economizar recursos humanos e materiais do Estado. Tais ativos poderiam ser empregados para a persecução de crimes realmente graves. Costumo dizer que quem é garantista e favorável ao princípio da intervenção mínima é necessariamente um apoiador da adoção de critérios de discricionariedade para reger a decisão do Ministério Público de acusar ou não acusar. Enquanto isto não vem, mourejamos nessa trilha árida da luta contra o crime. A Polícia fez um bom trabalho? Vem a denúncia e o caso vai a juízo. Nem bem a causa criminal ultrapassou as dificuldades próprias da fase investigativa e já então torna a manifestar-se a burocracia processual brasileira. Ritos pesados, nos quais, por amor à tradição, juízes, membros do Ministério Público e defensores continuam a apoiar suas argumentações e decisões em longas e bizantinas peças jurídicas, em lugar de adotarem, como determina a lei, um procedimento verdadeiramente oral, como se fez com sucesso em vários países latino-americanos que implantaram modelos processuais penais de cunho acusatório nos últimos anos. Identidade física do juiz, imediatidade e celeridade, princípios irmãos da oralidade, são colhidos de roldão. A lei não pega. Nesse miolo de pão dormido, há ainda o emaranhado de nulidades, reais ou inventadas, que podem ser facilmente exploradas nos tortuosos canais dos habeas corpus, procedimentos mágicos que saltitam por aí, de liminar em liminar, proeza muito fácil para certos ginastas do Direito, e quase impossível para outros que não têm saber, ou berço ou fama. Some-se aí o festival de recursos que estimulam a chicana processual e a valia da tese prescricional. O tempo sempre conta a favor do réu culpado. O inocente não precisa do relógio para se livrar de uma acusação injusta. O culpado joga quase todas as suas fichas na morosidade do aparato da Justiça criminal (Polícia e Ministério Público incluídos) e nas benfazejas leis prescricionais dessa Terra de Santa Cruz, onde tudo já está geneticamente perdoado. Seja o que for, não há “pecado” original. Não importa se policiais e promotores tenham trabalhado bem. Morre a vítima e a prescrição “mata” o processo. O réu olha e ri. Talvez mate de novo. Há mais de duas décadas vejo essa ciranda repetir-se. Não é canção de ninar; é pesadelo. Policiais mal remunerados, viaturas aos pedaços, armamento que não existe ou que não funciona. Gente corrupta no serviço público. Cidades sem delegado, juiz ou promotor. Celas infectas, comida estragada. Vítimas tratadas como lixo, quando alguém se lembra delas. Outros vêm essas mesmas cenas tétricas, mas usam confortáveis lentes cor-de-rosa, como as do professor Pangloss, personagem da obra satírica “Cândido ou o Otimismo”, que Voltaire publicou em 1759. E, quando enxergam, é com o olhar atravessado, torto, só vê um lado, com viés caolho. Este não é o melhor dos mundos possíveis. É um carrossel de histórias tristes. Ali vai o pangaré da vítima, que perdeu a vida, e cuja família ficou na rua da amargura e não viu a indenização nem verá o homicida preso. Acolá, segue a montaria trôpega do réu criminal, que sofre no lombo as chicotadas que lhe dá o Estado, ao metê-lo numa infecta vivenda de bichos. O “merry-go-round” gira, mas nada do que se vê passar é alegria. É só choro. É só ranger de dentes. Lá e cá. E mais além. Que o digam as vítimas desse horrendo atentado em Paris, carregado de tintas sangrentas de ódio irracional, fé cega e preconceito. É preciso dar graças aos céus, seja a Jeová ou a Alá, por não termos ataques terroristas no Brasil. Ainda… Do comum do dia-a-dia já não damos conta. Diante de algo semelhante, o que faríamos? Leis mais rigorosas resolvem? Não. O caminho não é tão fácil. Legislar compulsivamente, para lá ou para cá, é uma reação esperada e também uma miragem. Podemos nos perder no deserto do punitivismo penal ou nos afogar no oba-oba do garantismo à brasileira. Um Código Penal novinho em folha espera votação no Congresso. É bom? Só vendo. O novo CPP, já aprovado no Senado, ainda dormita na Câmara. Umas coisas prestam. Outras são remendo de pano novo em roupa velha. Não creio que tais projetos serão capazes de resolver esses e outros graves problemas da justiça criminal brasileira. O poço é fundo, como o assustador e mítico “Buraco do Vento”, fincado lá no sertão de Tucano. A reforma da segurança pública e de todo o sistema penal (de cabo a rabo, de A a Z) é um projeto ambicioso, mas premente para o futuro do País. Os temas criminalidade e desenvolvimento humano estão relacionados. Em países mais atrasados, há mais crimes, mais violência. Sociedades mais avançadas e economicamente equilibradas têm índices de criminalidade toleráveis. Ao lado da reforma política, esta é uma das agendas mais importantes da República, essencial ao nosso processo civilizatório e ao salto definitivo para o status de nação desenvolvida. Mas a prioridade número um está em outro campo. É urgente a implantação de um novo modelo educacional no Brasil, quiçá mantido diretamente pela União, com escolas de tempo integral e de qualidade para todas as nossas crianças, utopia sonhada há décadas pelo educador baiano Anísio Teixeira, como outro dia bem lembrou o jornalista Edson Felloni Borges. Não sei o que esses meus dois conterrâneos pensariam se lessem esse breve diagnóstico que fiz aqui. Não sou médico mas imagino saber identificar um paciente terminal. Não sei o que eles diriam, mas posso intuir. Concordariam comigo num ponto. A luta contra o crime começa pela educação para a cidadania. Neste cenário, o relógio também não está a nosso favor. Cinquenta mil mortos por ano. O despertador tocou. Já é hora. Tendo boas escolas, teremos melhores cidadãos.
VLADIMIR ARAS, soteropolitano, nascido em 1971, é mestre em Direito Público pela UFPE, professor assistente de Processo Penal da Ufba e membro do Ministério Público Federal. Edita o “Blog do Vlad” e está no Twitter: @VladimirAras.
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