Opinião
Se espera que o pobre passe a usufruir dos direitos já garantidos ao rico, e não que o rico se submeta à situação de injustiça historicamente imposta ao pobre A prisão de pessoas de elevado poder aquisitivo ou de grande notoriedade – sejam executivos e empresários, ou figuras do meio político – tem gerado manifestações cada vez mais assíduas, principalmente nas redes sociais e nos portais de notícias, de um sentimento que os alemães expressam com a palavra schadenfreud, que pode ser traduzida livremente como “prazer com o sofrimento alheio”.
Embora fosse de se esperar que, com a retomada do processo democrático no Brasil já há 20 anos, ocorresse a universalização da aplicação da lei – o que fatalmente resultaria em que, contrariando nossa tradição, pessoas de todas as origens e segmentos sociais passassem a ser investigadas e a sofrer consequências punitivas por eventuais crimes praticados –, à medida que essas prisões se efetivam, à surpresa geral segue-se um regozijo quase doentio.
Na revolução francesa, a euforia tomou conta de populares quando os símbolos da realeza foram linchados, humilhados e decapitados em praça pública. Mais de dois séculos depois, nas praças públicas cibernéticas, parece que o que mais se quer ver são cabeças rolando.
A enxurrada de comentários sádicos com que internautas celebram notícias que trazem indícios de abusos de poder sofridos por presos bem posicionados na escala social é assustadora e inexplicável.
Assustadora por motivos óbvios. Inexplicável porque o argumento que geralmente se emprega a fim de legitimar o prazer que se sente diante da violência aplicada é o fato de que o preso rico deve ser tratado como o preso pobre. A violência propriamente não é sequer questionada; ao contrário, é naturalizada.
Para muitos leitores que comentaram sobre uma notícia recentemente publicada em diversos veículos, a qual relatava que familiares de empreiteiros teriam que se submeter à revista íntima, o essencial é que a esposa e a mãe do rico seriam finalmente tão humilhadas quanto a esposa e a mãe do pobre.
O fato de que todas seriam vítimas de uma das práticas mais invasivas e vexatórias ainda correntes em nosso sistema prisional, condenada por diversas organizações ligadas à defesa dos direitos humanos, não era motivo de qualquer espanto.
É bastante perigoso que esse tipo de argumento e de sentimento esteja difundido em nossa sociedade, porque quando se critica a impunidade de determinados grupos no nosso País, a ideia que está – ou deveria estar – subjacente é não só a da universalização da aplicação da lei, ou seja, de que todos devem estar sujeitos à força da lei e do sistema jurídico, mas, sobretudo, a da universalização do direito.
Apesar dos avanços alcançados com a redemocratização e a Constituição de 1988, estamos ainda muitos distantes disso. As camadas mais pobres não têm acesso ao exercício do direito. O pobre, no Brasil, conhece o Estado pela óptica das obrigações, e não como fonte de garantia de direitos. E, estranhamente, há os que pedem que se universalize a injustiça que o pobre sofre.
Ora, o que se espera é que o pobre passe a usufruir do conjunto de direitos já garantidos ao rico, e não que o rico se submeta à situação de injustiça historicamente imposta ao pobre. Para que uma sociedade democrática amadureça, é preciso que a justiça penal seja tratada com racionalidade.
Essa distorção e o deleite público com a generalização da injustiça, tão estimulada pela espetacularização de determinadas prisões e recortes editoriais sensacionalistas, não é compatível com o Estado Democrático de Direito.
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