Segurança pública
UPPs: um caminho para a guerra civil?
Especialista em direitos humanos atrela política belicista das autoridades à agonia social em comunidades do Rio de Janeiro
Em um território no qual 41 civis são assassinados a cada policial que perde a vida, a polícia amedronta em vez de proteger e as ouvidorias são nomeadas pelo secretário de Segurança, a insegurança e a sensação de guerra iminente imperam. Os territórios são invadidos e ocupados, e as vozes, caladas. Com o intuito de ouvir moradores de comunidades silenciadas pelas operações de invasão e ocupação, o livro Vivendo no Fogo Cruzado – Moradores de Favela, Traficantes de Droga e Violência Policial no Rio de Janeiro, lançado nesta quarta-feira 28 pela Editora Unesp, contesta o discurso belicista do governo do Rio de Janeiro e sua política de confronto com os traficantes, encampada pela PM fluminense.
Baseados em depoimentos dos próprios moradores das favelas, líderes comunitários e autoridades, a especialista em direitos humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Maria Helena Moreira Alves e o professor da Universidade Temple Philip Evanson mostram o terror ao qual moradores de favelas são submetidos cotidianamente. Segundo a autora, a situação que beira o estágio de guerra piorou com a implementação das UPPs. “Eu vejo o programa das UPPs como a tomada de territórios para ocupação permanente. Em vez de estar melhorando a situação, está causando uma reação e nos aproximando de uma situação de guerra civil”, denuncia.
A obra, que aponta rumos possíveis para a segurança pública no País a partir de experiências externas e internas, como o próprio Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), é lançada na sede da OAB-RJ com debate com o líder comunitário Deley de Acarí, morador da favela Parque de Acarí, e parentes de desaparecidos como Anderson Gomes Dias de Souza, filho de Amarildo de Souza, morador da Rocinha que não é visto desde 14 de abril.
Confira os principais trechos da entrevista com a autora:
CartaCapital – Por que a invasão ao complexo do alemão, em 2007, é considerada um marco no próprio livro?
Maria Helena Moreira Alves – A ideia surgiu com a nossa reação à invasão do Complexo do alemão em 2007 pelo governo do Estado e a declaração do [governador] Sergio Cabral de fazer guerra ao tráfico. Eu e o Philip [Evanson, coautor] estávamos muito preocupados com os termos bélicos que ele estava usando. Como eu já havia trabalhado com a Viva Rio, Ação Comunitária do Brasil e a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, que em geral reúne vítimas de violência policial, conversei com o Philip e tivemos a ideia de que é preciso fazer ouvir a voz das comunidades, quebrar esse silêncio de dentro das favelas. Mas cheguei à conclusão que seria interessante não apenas a voz das comunidades, mas também aquelas dentro da polícia que pedem reforma por meio do Pronasci e as do governo. Queríamos ouvir todas as pessoas envolvidas com o tema de segurança pública, mas dar muito mais ênfase às pessoas que viviam no fogo cruzado.
O discurso utilizado a partir dali representou uma mudança muito grande na política de segurança. Passou-se da ideia de segurança pública para a ideia de guerra em comunidades inteiras. Houve a instalação de um processo de guerra muito forte. Nem na época da ditadura foram vistos cercos e ocupação militar de áreas pobres. Havia remoção de favelas, mas não cerco.
CC – A quem serve a política de segurança pública do Rio de Janeiro?
MH – É uma política de segurança que não diminui o crime: o número de homicídios aumentou em vez de diminuir. A violência na região metropolitana aumentou. Até agora, a classe média e alta vêm apoiando as UPPs, mas tenho esperança de que vejam que não é por ai. Violência só gera violência. Isso é intrínseco. A esperança seria a retomada de um programa como o Pronasci. E tem pessoas muito interessadas nisso, inclusive dentro da polícia. A polícia comunitária, proposta há tempos por várias instituições, também é uma alternativa. A ideia é que tenhamos um polícia que seja não militarizada, que trabalhe juntamente com a comunidade, não use armas letais e trabalhe com programas sociais, principalmente na área de capacitação profissional.
Mas, em vez disso, a primeira coisa que Cabral fez foi pedir ainda mais caveirões. E a Polícia Militar já foi treinada de maneira tão violenta, está tão ligada à milícia e à corrupção que fica claro como nada está funcionando. O GPS do carro que levou Amarildo estava desligado, as câmeras da UPP também.
Esse debate da UPP é muito delicado, porque as pessoas não têm coragem de falar. Há ainda muitos dedos para se falar sobre o que realmente está acontecendo. Na comunidades, as pessoas não podem falar, não podem lutar por seus direitos, que estão sendo jogados fora. Não têm direito de ir e vir, de expressar seus sentimentos, nem de serem consideradas inocentes até que se prove o contrário.
CC – De que maneira, na sua opinião, as UPPs funcionam como instrumento de propaganda do governo Cabral e vitrine para a gestão de José Mariano Beltrame à frente da Secretaria de Segurança Pública do Rio?
MH – Eu vejo o programa das UPPs como a tomada de territórios para ocupação permanente. Essa política começou nos anos de 2007 e 2008 e, desde então, vemos uma situação de convulsão social, tanto que as pessoas só falaram conosco em condição de anonimato. É também uma situação de pânico, especialmente quando entram com os caveirões, com um megafone tocando um rap cuja letra diz que o Bope vai matar. E os desenhos das crianças que usamos para ilustrar o livro mostram esse verdadeiro pavor que todos têm do caveirão.
O Bope é uma tropa de elite treinada exclusivamente para reprimir e matar. E uma tropa treinada para fazer guerra é o contrário de uma polícia comunitária. Hoje, por exemplo, nos deparamos de forma corriqueira com a palavra chacina. E quando há chacina não há despreparo, como dizem, mas sim preparo para matar.
CC – Quão profundo é o abismo entre o Pronasci, que previa a segurança pública como responsabilidade da União, estado e município, assim como a criação de uma polícia comunitária, e o curso que toma a política de segurança pública levada adiante pelo governo fluminense?
MH – Há uma contradição entre a proposta de Cabral, que encampa essa questão bélica, e o Pronasci, que buscava uma proposta não letal quando o discurso do governo era o de comunidades tomadas pelo tráfico nas quais deveriam ser usadas uma política de guerra para reconquistá-lo. Esta proposta bélica foi implementada por meio das UPPs, com a participação do Bope, que invade a comunidade primeiro e depois estabelece uma sede da PM na favela, para ocupá-la permanentemente.
E nessa proposta de tomada de território, de guerra contínua, são usados os mesmos termos que os Estados Unidos usavam para explicar as mortes do Iraque, como “danos colaterais” no processo de recuperação do território.
CC – No livro, usa-se bastante o conceito “cidade partida” para descrever o Rio de Janeiro. Na sua opinião, as UPPs ajudaram a integrar asfalto e morro ou criaram uma distância ainda maior entre a elite da zona sul e a favela?
MH – A distância é ainda maior. No Leblon, por exemplo, não tem UPP, não tem invasão com caveirão. A cidade partida em termos de repressão é muito clara. Mas não termos econômicos e sociológicos, pois a economia da zona sul ainda depende das pessoas da comunidade que trabalham lá.
CC – Você diria que as favelas hoje podem ser consideradas senzalas do século 21?
MH – Isso ainda é muito forte. Há no inconsciente da classe média e alta do Rio uma visão escravocrata. Existe uma diferença muito grande entre as populações que moram nas favelas e as populações dos bairros nobres.
CC – Qual seria, a longo prazo, o projeto das UPPs nas comunidades?
MH – Eu não vejo um projeto das UPPs. Vejo que em vez de estar melhorando a situação, está causando uma reação e nos aproximando de uma situação de guerra civil. A polícia deveria ser treinada para servir e trabalhar com a comunidade, protegê-la. Não pode ser uma polícia militar, treinada para matar. Isso é guerra.
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