Réplica

Greve e meritocracia » Por: Marcos Campos Taveira

Nossa greve não foi por salários, mas por reestruturação de carreira. Sem dúvida, salário é importante. Em sã consciência, ninguém abre mão de 15% de reajuste, embora o percentual seja baixo, se comparado às perdas inflacionárias acumuladas ao longo dos anos.

Abrimos mão deste reajuste em nome de quê? Em nome da meritocracia! O Brasil é o único país do mundo em que se exige diploma de bacharel em Direito para chefiar uma unidade policial. O cargo de delegado só existe aqui. Também é um dos poucos países onde existe o inquérito policial, peça meramente burocrática, cujo índice de êxito gira ao redor de 5%.

Para o delegado de polícia, esse êxito não implica necessariamente a elucidação do crime ou obtenção de provas de autoria e materialidade. Quase sempre resulta num mero relatório, que retrata a burocracia, a “cartorialização” da atividade policial e a falência do modelo de investigação em nosso País. Quase sempre, não importa o resultado. Cumprida a formalidade, caso encerrado. Assim fica fácil maquiar estatísticas.

Para escrivães, papiloscopistas e agentes (EPAs) da Polícia Federal essa realidade é incômoda. Por isto, queremos mudanças.

Esta é a nossa resposta ao delegado Flávio Vieitez Reis corregedor regional da PF no Amapá, em seu artigo “Reestruturação na Polícia Federal”, publicado neste site, em que afirma que quem defende uma carreira única, acabar com o inquérito e com o cargo de delegado seria “xiita”. Tentaremos demonstrar que não. Com argumentos lógicos, lutamos pela eficiência, racionalidade e meritocracia. Não somos xiitas!

Meritocracia? Como assim? Na Polícia Federal, há várias divisões e delegacias especializadas: de repressão a entorpecentes, a crimes conta o meio ambiente e patrimônio histórico, a crimes previdenciários, a crimes fazendários, Interpol, dentre outras. Quem as chefia? Um delegado, bacharel em Direito! Vejamos a de meio-ambiente: por que não um biólogo, engenheiro ambiental, geólogo, geógrafo, zoólogo, veterinário etc.? Temos EPAs que são bacharéis, mestres e doutores nestas áreas (e em várias outras). Outros exemplos: na fazendária e previdenciária, há EPAs que são economistas, contabilistas, engenheiros, matemáticos etc. No modelo atual, jamais poderiam dirigir ou coordenar.

E na Interpol? Quantos bacharéis em direito já a chefiaram, apesar de monoglotas e alguns até com dificuldade de domínio da língua portuguesa? Contudo, todos os EPAs passam por um teste de língua estrangeira. Os delegados, não. Esta é outra resposta ao delegado Flávio Vieitez Reis, que parece se envergonhar de EPAs que cometem erros de português.

Durante a greve, policiais lotados na Interpol informaram que um delegado teria criado regra inédita: proibiu EPAs de fazer (e receber) chamadas internacionais na Interpol. Como não tem proficiência em outros idiomas, para evitar constrangimentos, passou a recorrer a um perito criminal, para auxiliar nas ligações internacionais! “Meritocracia já” é o nosso novo mantra, aliado à carreira única.

E o que dizer do Comando de Operações Táticas (COT) e a Coordenação de Aviação Operacional (CAOP), unidades operacionais também chefiadas por bacharéis em ciências jurídicas? Ainda que um delegado seja piloto ou outro tenha curso de especialização em operações especiais, seria o mais indicado para chefiar policiais com 20 anos de experiência? Isto seria meritocracia, burocracia ou privilégio?

Há ainda bacharéis em direito (apelidados de “tudólogos”) chefiando coordenações e divisões administrativas, tais como de telecomunicações, engenharia, licitações, materiais, contratos, logística, gestão de pessoal, comunicação social, dentre outros. Sem falar dos muitos EPAs com formação acadêmica e experiência profissional em administração de empresas e recursos humanos, por exemplo, que sequer são cogitados para assumir a coordenação desses setores.

Nas unidades de polícia marítima, onde há EPAs mergulhadores profissionais, pilotos de embarcação, com cursos no exterior, há chefes com formação jurídica que mal sabem nadar.

Conhecimento jurídico nunca foi parâmetro para medir eficiência da atividade policial. Se fosse, bacharéis em Direito seriam os chefes das melhores policiais do mundo, tais como Polícia Metropolitana de Londres (Scotland Yard), FBI, Polícia Federal Alemã. Ou de renomadas unidades policiais especiais, como a SWAT americana, GSG9 alemão, Yaman israelense, GIGN francesa e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM do Rio.

Sem falar que quase metade dos EPAs são bacharéis em Direito também. Então, por que um delegado de 28 anos de idade, recém-chegado, sem experiência de vida ou na atividade policial, já inicia sua carreira chefiando quem, às vezes, trabalha há 20 ou 30 anos no setor? Quais são os critérios que o Departamento de Polícia Federal (DPF) utiliza para designar um delegado chefe de determinada unidade? Sabe-se que não se baseiam na meritocracia.

Não queremos apenas estas mudanças, mas também de um regimento interno que serve de instrumento de perseguição contra os EPAs. O que escrevi aqui me sujeitaria a sanções disciplinares? Revelei algum segredo profissional? Apenas expressei minha opinião, que é garantia constitucional. Mas o regimento interno do DPF, do tempo da ditadura, tentar calar vozes contrárias e cercear o direito à crítica. Muitos têm que recorrer ao Judiciário para reverter punições administrativas, não sendo raras as indenizações por danos morais pagas pela União, em virtude de arbitrariedades.

Alguns delegados usam o argumento de que o concurso para seu cargo é mais difícil. Será? O edital do último concurso para seleção de EPAs exigiu conhecimentos de contabilidade, economia, administração, informática e raciocínio lógico, além daqueles para o cargo de delegados, tais como português, direito etc.

No último edital do concurso para o cargo de delegado da PF, alguns aspirantes a juristas incluíram prova oral, que talvez seja útil a juízes e promotores, mas inservível para a atividade policial. Enquanto no Primeiro Mundo, a polícia pede uma autorização para quebra de sigilos e o Judiciário a concede, em nossa democracia tupiniquim, as entidades representativas de delegados de polícia fazem lobby para tentar obter poderes para pedir e autorizar a quebra de sigilos. A novidade da prova oral para seleção de delegados, certamente, mascara interesses corporativistas de alcançar status de magistrados e membros do Ministério Público.

Por trás da aparente ingenuidade neste desejo pueril de equivalência a juízes e promotores, alguns incompetentes anseiam conquistar garantias inerentes aos cargos de promotor ou juiz, numa tentativa de encurtar o caminho do concurso público. E uns ainda se atrevem a acusar os EPAs de supostamente pretenderem “entrar pela janela” no cargo de delegado. Não queremos ser delegados. Temos policiais capacitados para assumir funções de direção, planejamento e coordenação. Podemos chefiar, sim, mas pelo mérito!

Outro problema crônico de gestão de pessoal na PF: enquanto faltam EPAs (milhares), sobram delegados. Em breve, talvez comecem a pleitear chefias de serviços de copa e cozinha, por excesso de contingente. A estrutura da Polícia Federal é equivocada.

Pela primeira vez, uma greve de policiais federais conseguiu unir e mobilizar servidores lotados em setores que historicamente não participavam de movimentos reivindicatórios, como do COT e de unidades de inteligência policial. Mesmo com perda salarial, almejamos a meritocracia!

Quanto ao reconhecimento salarial, alguns usam a mídia para questionar a reinvindicação para que os EPA´s sejam remunerados nos padrões dos demais cargos da carreira policial federal. Vale lembrar que oficiais da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que realizam tarefas similares, tem subsídios de nível superior. Servidores de outros órgãos, como de agências reguladoras, também são remunerados de acordo com a tabela salarial.

Comparações que delegados fazem com a carreira militar nas Forças Armadas chegam a ser grotescas. Para se alcançar o posto de general, inicia-se na base da carreira, nas atividades de um aspirante a oficial. Por mérito (cursos, especializações etc.) galgam-se os degraus da carreira, cujo topo se chega geralmente após mais de 20 anos de serviço. Nas Forças Armadas ninguém se torna chefe da noite para o dia. Sem experiência e especialização não se chega ao generalato.

Na PF, promovem-se cursos rápidos de formação de gestores, para justificar nomeações para cargos de chefia. Soa como piada de mau gosto, quando se sabe que há servidores de outros cargos mais capacitados e com anos de experiência à frente de alguns neófitos.

Marcos Campos Taveira é agente de Polícia Federal, lotado na superintendência do DPF em Brasília, formado em Medicina pela USP, com especialização em Análise de Sistemas, residência em Informática Médica/USP, tendo iniciado o curso de Doutorado (abandonado por falta de dinheiro e excesso de estupidez) em Inteligência Artificial (Redes Neurais) Aplicada à Medicina (Gestação de Alto Risco), pela Faculdade de Medicina/USP (ex-bolsista do CNPq). taveira.mct@uol.com.br.

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